quarta-feira, 24 de junho de 2015

Silas Daniel responde a Franklin Ferreira - Parte 1-5


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Observações do teólogo Franklin Ferreira ao texto de Silas Daniel, contido na revista assembleiana “Obreiro Aprovado Ano 36, nº 68”.  


Franklin Ferreira:

                              “EM DEFESA DO ARMINIANISMO”: UMA AVALIAÇÃO

Em linhas gerais, o texto “Em defesa do arminianismo” (publicado na revista Obreiro Aprovado Ano 36, nº 68) é bom. O autor, o pastor assembleiano Silas Daniel, acerta ao distinguir entre o calvinismo (denominado no texto de “compatibilista”) e o hipercalvinismo (que, suponho, seja o que o autor chama de “calvinismo fatalista”). E ele também acerta ao tratar o primeiro como uma interpretação cristã legítima, e o segundo como um erro sério que precisa ser rejeitado. E sugere algumas boas razões para o ressurgimento da fé reformada no Brasil (prevalência do pelagianismo em muitos púlpitos, críticas caricaturais ao calvinismo e a superficialidade neopentecostal). Ao fim do artigo, o autor fala em tons fortes e vigorosos da graça salvífica oferecida pela fé em Cristo, de forma bíblica. Então, o tom irênico do autor é bom e saudável.

Na tradição batista onde fui criado (fundamentalista e pietista, com alguma abertura à teologia liberal), o calvinismo ainda é tolamente tratado por alguns como uma “heresia perniciosa” (para usar as palavras do autor), muitas vezes assim rotulado ao lado de G12, “guerra espiritual” e outras esquisitices presentes no cenário evangélico brasileiro. Então, o tom adotado pelo pastor Silas em seu ensaio é um avanço importante no debate. E deve-se afirmar claramente, junto com o autor: o arminianismo não é pelagianismo, apesar desta posição ter prevalecido e ainda ser a visão religiosa de muito pregadores e mestres evangélicos no Brasil, que têm como modelo Charles Finney; mas, dependendo de que autor se lê (já que uma das poucas confissões de fé arminianas representativas são os “Artigos da religião”, revisados por John Wesley), esta tradição pode ser considerada semipelagiana ou semiagostiniana (mencionados, mas não definidos no texto).

Posto isso, o texto tem vários e sérios problemas, no campo da teologia e da história do pensamento cristão. Sobre o uso da Escritura, os versículos bíblicos são tratados como textos-prova. Não há sugestão de exegese ou de estudo léxico das palavras-chave, ou mesmo referências ao lugar das passagens na teologia bíblica. Isso fica evidente, por exemplo, na interpretação do autor da expressão “aos que dantes conheceu” (Rm 8.29), reduzida a mera previsão geral divina (ao interpretar 1Pe 1.2). Também não são indicados comentários bíblicos para suplementar as pressuposições do autor. Simplesmente presume-se que os ensinos arminianos são auto-evidentes nos versículos bíblicos citados. Há muito tempo atrás fui arminiano, e usei muitos daqueles versículos que o autor citou para “provar” o arminianismo e atacar o calvinismo. Mas, para cada texto bíblico citado há uma interpretação, por assim dizer, “calvinista”, que é muito mais coerente e consistente com o texto bíblico em si, o livro onde este está inserido e o contexto global da Escritura – e o leitor pode ir aos comentários de Agostinho, Martinho Lutero e João Calvino, ou aos de D. A. Carson, Douglas Moo, Donald Guthrie, F. F. Bruce e John Murray, para conferir a exegese das passagens-chave desta controvérsia.

Pelo menos, o autor reconhece as várias tensões (e, por que não, as contradições) presentes na teologia arminiana, como ao tratar da presciência divina e do alcance da expiação: em outras palavras, o problema posto é: se Deus já sabia quem receberia a Cristo, por que este precisaria morrer por todos? Ou quando trata do significado da palavra “mundo”, sem levar em conta o significado da propiciação realizada por Cristo (ao citar 1Jo 2.2 como texto-prova da expiação geral). E quando admite algum tipo de predestinação (“sim, ele predetermina muitas coisas, mas não tudo”) ao mesmo tempo que, ao pressupor que Deus previu antes de predestinar, não trata de uma pergunta crucial, isto é, quem criou o que Deus previu?

Também há vários problemas no campo da teologia histórica. Trato apenas dos principais. Diferente do que o autor afirma, quase todos os grandes teólogos medievais criam na predestinação, seguindo em maior ou menor grau o que Agostinho ensinou no século V: Próspero, Gottschalk, Anselmo, Bernardo, Bradwardine, Tomás de Kémpis e Tomás de Aquino (cf. S. Th: I, q. 23, a. 1, a. 2, a. 4, a. 7, a. 8; I-IIae, q. 117, a. 5; II-IIae, q. 174; III, q. 24, a. 1, a. 3). Os pré-reformadores Jan Hus e John Wycliffe também afirmaram o ensino da predestinação em moldes agostinianos. Um detalhe que chama a atenção é que ainda que Agostinho seja citado, sua compreensão sobre a predestinação e a graça não é oferecida no texto.

O mais surpreendente é quando o autor afirma que Lutero abrandou a posição afirmada em seu tratado “Da vontade cativa”, e que passou a crer na possibilidade de se cair da graça (lendo erroneamente os Artigos de Esmacalde III.42-45, que, na verdade, refutava distorções anabatistas). Ao tratar de uma mudança de ênfase na teologia de Lutero, ele cita Herman Bavinck como fonte, mas não mencionou que este autor também afirmou que Lutero “nunca reverteu sua posição sobre predestinação”, e que os “verdadeiros luteranos” rejeitaram o sinergismo de Filipe Melanchthon (“Teologia Sistemática”, v. 2, p. 364).

Obviamente, há diferenças significativas entre os teólogos cristãos, e mesmo entre teólogos da tradição reformada. Por isso, um bom ponto de partida para tratar de temas teológicos controversos é começar com o que afirmam as confissões de fé que resumem as posições das tradições professadas, e não com as posições de teólogos, por mais importantes que estes sejam (por exemplo, nem todos os teólogos reformados ficam satisfeitos com a afirmação da CFW VI.1, de que Deus determinou permitir o primeiro pecado, mas esta confissão, e não a opinião dos teólogos, representa a posição reformada/puritana).

Sobre a participação dos arminianos no Sínodo de Dort – que talvez seja o mais importante concílio protestante já ocorrido – é necessário deixar claro que estes não foram vítimas inocentes do poder do Estado ou dos calvinistas, como o autor parece opinar. Como John de Witt afirmou: “Os arminianos (...) utilizaram de toda engenhosidade para evitarem qualquer declaração [clara de seus ensinamentos] (...), exigiram que fosse seguida sua própria pauta de assuntos em lugar da do Sínodo, praticaram evasivas táticas de retardamento e obstruções (...) e rejeitaram a autoridade do Sínodo em julgá-los; isto a despeito do fato de ser legalmente um Sínodo da Igreja em que ocupavam cargos, à qual confessavam pertencer, e a cuja disciplina estavam obrigados a se submeter em virtude de suas ordenanças e votos!” (cf. O Sínodo de Dort”, em Jornal Os Puritanos [Ano 3 nº 2, Março/Abril 1995], p. 27-30) E, como o pastor Silas reconhece, “os seguidores de Arminius na Holanda acabaram, com o passar do tempo, se afastando progressivamente do pensamento original de seu mentor”, rejeitando doutrinas como o pecado original, a expiação substitutiva e penal e até mesmo a divindade de Cristo, tornando-se, como nota o autor corretamente, “liberais em teologia”.

Quando trata da controvérsia arminiana do século XVIII, o autor (apoiando-se em uma única fonte secundária) poderia ter colocado toda a polêmica em contexto, o que seria muito instrutivo para nós, hoje. Em meados de 1740, houve um confronto entre Wesley e George Whitefield; o primeiro supunha, erroneamente, que a doutrina da predestinação poderia conduzir ao antinominianismo. Mas a leitura dos escritos puritanos, por parte de Wesley, conduziu-o a uma reavaliação desta posição e, com isso, alcançou-se um acordo entre ambos os lados, o que permitiu uma cooperação na pregação do evangelho, já que nos temas centrais (pecado original, justificação pela fé e santificação) havia acordo. Mas a contenda reiniciou-se em meados de 1770, por causa não da doutrina da predestinação, mas do ensino da justificação – o suíço John Fletcher (Jean de la Fléchère), colega de John Wesley, começou a negar a doutrina da imputação da justiça de Cristo ao fiel. Em síntese, ele afirmou que a justificação requereria santificação pessoal e não a fé somente (cf. “Fourth Check to Antinomianism”). Nesta altura, Wesley vacilou na defesa desta doutrina importantíssima para a fé evangélica. O contundente texto de Augustus Toplady, “Arminianismo: o caminho para Roma”, foi escrito nesta época – e em resposta a uma distorção da doutrina bíblica da justificação pela graça, recebida mediante a fé somente, com todas as implicações doutrinais e devocionais daí decorrentes. Richard Watson, talvez o mais habilidoso teólogo metodista, escreveu no século XIX, sobre Fletcher: “Embora muito admirado entre os wesleyanos, suas doutrinas não são admitidas como norma” (cf. Iain H. Murray, “Wesley and Men Who Followed”). E, diferente da perspectiva do autor, de que “o arminianismo ergueu-se vitorioso” da controvérsia, os metodistas arminianos saíram da igreja episcopal, que, na época, ainda era confessionalmente calvinista, para fundar um dos ramos do metodismo, e do qual se originou os movimentos de santidade (o outro ramo, seguidor do calvinismo, era o metodismo galês, e se tornou presbiteriano, e não congregacional, como afirmou o autor).

O estudo da história do pensamento cristão é muito importante. Mas, no fim, o que irá decidir toda discussão no âmbito da fé é a Escritura, que é “o juiz supremo, pelo qual todas as controvérsias religiosas têm de ser determinadas, e por quem serão examinados todos os decretos de concílios, todas as opiniões dos antigos escritores, todas as doutrinas de homens e opiniões particulares, o juiz supremo, em cuja sentença nos devemos firmar, não pode ser outro senão o Espírito Santo falando na Escritura” (CFW I.10). Portanto, o que conta é o que a Escritura ensina. Que ela seja estudada por meio de “exegese, exegese e mais exegese”, sempre em dependência do Espírito Santo. Pois devemos nos apegar somente e fielmente à Palavra de Deus, revelada nas Escrituras somente.

Fonte: 


Silas Daniel
Sobre artigo do irmão Franklin Ferreira acerca de meu artigo em Obreiro

Soube no final da tarde de anteontem que o professor batista calvinista Franklin Ferreira publicou em seu Facebook, provavelmente a pedido de alguns de seus leitores, uma avaliação sobre o meu artigo “Em Defesa do Arminianismo”, publicado na edição 68 (janeiro a março de 2015) da revista Obreiro Aprovado da CPAD (Para ver sua avaliação, clique AQUI). Antes de tudo, fico feliz em saber que a revista “Obreiro”, cuja circulação se destina originalmente aos arraiais assembleianos, esteja também sendo lida por irmãos em Cristo de outros arraiais. E nos alegra ainda mais saber que é lida por gente do calibre do irmão Franklin Ferreira, a quem, mesmo não conhecendo pessoalmente, admiro, devido à qualidade dos seus trabalhos que já me chegaram às mãos, notadamente a sua obra rica e de fôlego Teologia Sistemática – uma análise histórica, bíblica e apologética para o contexto atual, em coautoria com Alan Myatt.

Soube só no final da quarta-feira sobre o artigo do irmão Franklin porque, até a presente data, não tenho Facebook, assim como não tenho Twitter, sendo minha presença na internet resumida a cinco canais: um blog criado em 2007 e abandonado há dois anos, minha coluna no site de notícias CPADNews, dois emails – um de trabalho e outro pessoal – e uma conta no WhatsApp para falar com amigos, criada há menos de seis meses. Não por acaso, foi somente por email – e depois por uma mensagem de um leitor no espaço de comentários de minhas colunas aqui – que fiquei sabendo do artigo, que só fui ler ontem, no final da tarde.

Agradeço a cordialidade e as palavras de apreço do irmão Franklin na abertura de seu artigo e pretendo, por meio de três artigos que serão publicados aqui, neste espaço, na semana que vem (o primeiro na segunda, dia 1; o segundo na terça-feira, dia 2; e o terceiro na quarta-feira, dia 3), fazer algumas observações acerca de cada uma das dúvidas e objeções que o irmão Franklin levanta no decorrer de sua avaliação sobre o conteúdo de meu artigo “Em Defesa do Arminianismo”. Ontem à noite ainda, comecei a escrevê-lo e já estou com os dois primeiros artigos prontos, faltando só uma última lida para revisão, e o terceiro está quase concluído. Preferi dividir essas minhas observações em três artigos porque o texto inteiro, como quase tudo que escrevo, é bem extenso.

Até lá, indico, como “aperitivo” para os leitores, o excelente artigo do irmão e competente teólogo arminiano Zwinglio Rodrigues sobre o texto do irmão Franklin acerca do meu artigo em Obreiro Aprovado. Para lê-lo, clique AQUI.
Abraço a todos e até o primeiro artigo na segunda-feira!



SILAS DANIEL RESPOSTA PARTE 1
Como anunciado em artigo publicado aqui, na sexta-feira, dia 29 de maio, segue hoje o primeiro de três artigos em sequência que estarei publicando nesta minha coluna no CPADNews sobre as objeções levantadas pelo irmão Franklin Ferreira ao meu artigo publicado na revista Obreiro Aprovado do primeiro trimestre deste ano (Se você pegou o bonde andando e não sabe do que se trata, clique AQUI). O segundo artigo será publicado amanhã, dia 2 de junho, e o terceiro e último na quarta-feira, dia 3 de junho. Vamos às minhas primeiras observações:

1) O irmão Franklin escreve que o semipelagianismo ou semiagostinianismo foi “mencionado, mas não definido” no meu texto. Bem, acho que no meu texto eu deixo claro o que é o semipelagianismo ou semiagostinianismo, diferenciando-o claramente do arminianismo. Se não, vejamos (seguem abaixo trechos do meu artigo que o provam):

“Portanto, o Arminianismo não tem absolutamente nada a ver com Semipelagianismo e muito menos com Pelagianismo, como acusam desonestamente calvinistas mal informados – ou até mal intencionados. O monge Pelágio da Bretanha (350-423), como sabemos, não acreditava nas doutrinas bíblicas do Pecado Original, da Depravação Total e da Graça Preveniente, esposadas e defendidas tanto por calvinistas como por arminianianos”.

“Mas, a acusação mais comum que tem sido feita contra os arminianos é que eles, não obstante não serem pelagianos, seriam semipelagianos, acusação igualmente falsa. O Semipelagianismo surgiu logo após a condenação do Pelagianismo, quando alguns cristãos do quinto século, ao lerem os argumentos de Agostinho contra Pelágio, concordaram que Pelágio havia incorrido em grave heresia, mas consideraram também que Agostinho havia exagerado um pouco em sua contra-argumentação às heresias pelagianas. Pelo fato de esses cristãos discordantes admirarem muito Agostinho, há quem prefira até chamá-los de ‘semiagostinianos’, mas prefiro usar aqui a nomenclatura tradicional ‘semipelagianos’, porque é como são mais conhecidos”.

“Diziam os semipelagianos, encabeçados pelo monge e teólogo francês João Cassiano (360-435), que os erros de Agostinho em seu embate com Pelágio foram dois: primeiro, seu conceito de predestinação, no que estavam certos; e segundo, sua defesa da Depravação Total, no que estavam completamente equivocados. Os semipelagianos não negavam o pecado original – isto é, o pecado herdado de Adão e Eva, a natureza pecaminosa etc –, mas diziam que, mesmo após a Queda, o ser humano ainda tinha em si resquícios da volição pré-Queda, um livre-arbítrio remanescente, que o possibilitava, sem precisar de uma graça preveniente, responder com fé e arrependimento à pregação do Evangelho. Para eles, Deus poderia até dar início à fé em alguns casos, mas em muitos deles, ou na maioria, era o próprio homem que dava o initium fidei, o primeiro passo para a Salvação”.

“O Semipelagianismo, após muitas discussões, foi condenado no ano 529 pelo Concílio de Orange. Entretanto, essa condenação se aplicou apenas à oposição dos semipelagianos à Doutrina Bíblica da Depravação Total. O mesmo concílio condenou a crença de que Deus predestinou o mal ou pessoas ao inferno”.

Pode-se até sugerir que eu poderia eventualmente me aprofundar mais no tema do semipelagianismo, mas não é possível dizer que eu apenas “mencionei” o semipelagianismo sem dizer o que é.

2) Uma das coisas que o irmão Franklin considera “grave e sério” em meu artigo é o fato de eu não ter dedicado boa parte do meu texto a fazer exegese dos textos bíblicos usados pelo arminianismo para embasar-se. Pelo jeito, ele não entendeu o propósito do texto. É óbvio que considero fazer exegese algo importantíssimo, mas o objetivo do meu artigo não era fazer exegese de uma série de textos bíblicos citados pelo arminianismo para comprovar sua veracidade bíblico-doutrinária para calvinistas. Meu artigo foi escrito para apresentar, de forma geral, o arminianismo aos leitores da revista (destinada originalmente ao público assembleiano) que, eventualmente, mesmo sendo assembleianos, podem (alguns deles) desconhecer o que defende realmente o arminianismo e qual a sua história, desconhecimento este que se deve à influência do semipelagianismo popular no meio evangélico de hoje e aos “espantalhos” que muitas vezes alguns calvinistas fazem do arminianismo e que recentemente se popularizaram por causa da onda neocalvinista no Brasil, de que falo na abertura do meu artigo. Isso está mais do que claro no meu texto.

Inclusive, a parte do meu artigo ao qual o irmão Franklin se refere, quando critica a ausência de exegese em alguns textos bíblicos citados por mim, era justamente aquela parte – que é a menor do artigo (exatamente 1/5 do texto) – onde eu tinha apenas o propósito de apresentar, de forma resumida, o que defende o arminianismo. Portanto, daí concluir que eu e os arminianos de forma geral pouco se importam com exegese, só porque não dediquei espaço no meu texto para isso quando este claramente não era o seu propósito, é um verdadeiro “salto quântico” de interpretação. Se o propósito do artigo fosse fazer uma exposição de textos-prova seguidos da exegese de cada um, ele teria sido totalmente diferente. Ele seria quase que totalmente disso. Eu não gastaria tempo falando das outras coisas que disse ali, mas me deteria principalmente em fazer exegese e o artigo teria que ser muito maior do que acabou sendo - ele  teve 17 páginas. A única passagem bíblica em que citei alguma obra tentando fazer uma breve exegese com exposição lexical foi João 6.44, mas porque, repito, este não era o objetivo do texto.

“Ah, mas o título do artigo era ‘Em defesa do arminianismo’, o que poderia sugerir o contrário”, alguém pode dizer. Ora, o título foi sugerido pelo editor da revista e eu acabei aceitando só para que o título não ficasse muito longo, pois o meu título original era muuuuito maior. Ademais, o subtítulo explica bem o propósito do artigo, que fica claro também logo na abertura, de maneira que considero estranho que alguém não tenha entendido já de cara o propósito do artigo (O subtítulo na capa era “O que é, de fato, o arminianismo, o que realmente ensina e o seu lugar na história”/ e no miolo da revista, o subtítulo era “Uma análise sobre a recente ascensão do Calvinismo no Brasil e uma exposição do que ensina, de fato, o Arminianismo”).

Aproveitando: em sua crítica, o irmão Franklin me indica, para fazer uma exegese correta das passagens bíblicas que cito em defesa do arminianismo, os comentários de “Agostinho, Martinho Lutero e João Calvino, ou os de D. A. Carson, Douglas Moo, Donald Guthrie, F. F. Bruce e John Murray”. Acho muito bons os comentários dos referidos irmãos e tenho obras de quase todos eles, mas também gosto muito dos comentários a essas passagens bíblicas feitos por Armínio, John Goodwin, John Wesley, Adam Clarke, Richard Watson, William Burt Pope, Comentário Beacon, William Watson Menzies, Stanley M. Horton etc. Em muitas coisas concordo com aqueles, em outras concordo mais com estes.

3) O irmão Franklin afirma: “Pelo menos, o autor reconhece as várias tensões (e, por que não, as contradições) presentes na teologia arminiana, como ao tratar da presciência divina e do alcance da expiação: em outras palavras, o problema posto é: se Deus já sabia quem receberia a Cristo, por que este precisaria morrer por todos? Ou quando trata do significado da palavra ‘mundo’, sem levar em conta o significado da propiciação realizada por Cristo (ao citar 1Jo 2.2 como texto-prova da expiação geral). E quando admite algum tipo de predestinação (‘sim, ele predetermina muitas coisas, mas não tudo’) ao mesmo tempo que, ao pressupor que Deus previu antes de predestinar, não trata de uma pergunta crucial, isto é, quem criou o que Deus previu?”.

Vamos por partes. Primeiro, eu não me esquivei da pergunta “Se Deus já sabia quem receberia a Cristo, por que este precisaria morrer por todos?”, como é sugerido. Eu a levantei e tratei dela. E em segundo lugar, creio ter tratado minimamente do significado da palavra “mundo” levando em conta o sentido da propiciação efetuada por Cristo (se não me detive em meu artigo em um desenvolvimento da doutrina da propiciação, é porque isso alongaria mais ainda essa parte específica do meu artigo que tratava exatamente de resumir para o leitor o que crê o arminianismo).

Se não, vejamos – seguem os trechos em que trato das duas coisas (com grifos e colchetes que inseri para enfatizar o que digo):

“A Expiação de Cristo é suficiente, mas só se torna eficiente na vida daqueles que sinceramente se arrependem de seus pecados e aceitam Cristo como único e suficiente Senhor e Salvador de suas vidas. Trata-se, portanto, de uma Expiação Universal Qualificada, e não de uma Expiação Limitada”.

“Conquanto existam passagens bíblicas que afirmam que Cristo morreu pelas ovelhas (Jo 10.11,15), pela Igreja (At 20.28 e Ef 5.25) ou por ‘muitos’ (Mc 10.45), a Bíblia também afirma claramente em muitas outras passagens que a Expiação é universal em seu alcance (Jo 1.29; Hb 2.9 e 1Jo 4.14), o que deixa claro que as passagens que dão uma ideia de ela ter sido limitada nada mais são do que referências à eficácia da Expiação. Ou seja, a Expiação de Cristo foi realizada em prol de toda a humanidade, mas só os que a aceitam usufruem de sua eficácia”.

“Os que crêem em Cristo são obviamente associados à obra expiadora (Jo 17.9; Gl 1.4; 3.13; 2Tm 1.9; Tt 2.3; 1Pe 2.24), mas a Expiação é universal (1Jo 2.2). E a eficácia não está na salvação de todos, mas na consecução da Salvação. O fato de a Expiação só ter sido aceita e aplicada em muitos e não em todos não significa que sua eficácia é comprometida. O fato de muitos usufruírem dela já demonstra sua eficácia. Ela só não seria eficaz se ninguém se salvasse por ela. Se alguém foi salvo por ela, esta foi eficiente. Não houve ‘desperdício’ pelo fato de seu alcance ser universal, mas nem todos serem salvos. Além disso, se crermos que a Expiação de Cristo é limitada, o que seria um sacrifício que proporcionasse uma Expiação Ilimitada? Jesus sofreria um pouco mais na cruz?”.

“Há casos de arminianos que crêem em uma Expiação Limitada com base na presciência divina [ou seja, estou tratando aqui da tal pergunta “Se Deus já sabia quem receberia a Cristo, por que este precisaria morrer por todos?”], o que apresenta certa coerência, porém o Arminianismo Clássico nunca defendeu a Expiação Limitada justamente porque não só há passagens bíblicas claras sobre o alcance universal da Expiação como também uma Expiação Limitada é uma contradição ao ensino bíblico de que Deus não faz acepção de pessoas (Dt 10.17 e At 10.34). Deus é soberano, mas isso não significa dizer que Ele fará alguma coisa que contradiga Seu caráter santo e amoroso. Lembremos que uma hermenêutica prudente interpreta uma passagem ou passagens observando o contexto geral sobre o assunto na Bíblia. A Bíblia se explica por meio dela mesma. Portanto, se ela afirma que Deus é santo, justo e amor, e não faz acepção de pessoas; e que Deus quer que todos se salvem e cheguem ao pleno conhecimento da verdade (1Tm 2.3,4); e que a Expiação foi por ‘todos’ (1Tm 2.6; Hb 2.9); logo as passagens em que há alusão a ‘muitos’ devem ser interpretadas à luz dessas outras. O resultado é que as passagens que aludem a ‘muitos’ não se referem ao alcance da Expiação, que é universal, mas à eficácia dela para os ‘muitos’ que a receberam por fé”.

“Não se pode simplesmente desconsiderar o significado óbvio dos textos sem ir além da credibilidade exegética. Quando a Bíblia diz que ‘Deus amou o mundo’ (Jo 3.16) ou que Cristo é ‘o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo’ (Jo 1.29) ou que Ele é “o Salvador do mundo” (1Jo 4.14), significa isso mesmo. Em nenhum texto o vocábulo ‘mundo’ se refere à Igreja ou aos eleitos. Escreve o apóstolo João: ‘E Ele é a propiciação pelos nossos pecados, e não somente pelos nossos, mas também pelos de todo o mundo’ (1Jo 2.2). Ou como disse o teólogo H. C. Thiessen: ‘Concluímos que a Expiação é ilimitada no sentido de estar à disposição de todos, e é limitada no sentido de ser eficaz somente para aqueles que crêem. Está à disposição de todos, mas é eficiente apenas para os eleitos’ (Lectures in Sistematic Theology, Grand Rapids, 1979)”.

Por fim, a pergunta “Quem criou o que Deus previu?”. O problema é que os calvinistas pensam que Deus só pode prever aquilo no qual Ele diretamente criou ou interveio. Eu expliquei isso no meu artigo, inclusive lembrando que o conhecimento divino do futuro contingente condicional, fato apresentado na Bíblia, é um problema para esse tipo de raciocínio:

“Os calvinistas erram ao vincular a presciência divina à causalidade. Para ser mais preciso: eles erram ao afirmar que Deus conhece previamente todas as coisas porque predestinou todas as coisas. [...] Deus conhece previamente tudo porque é onisciente, e não porque predeterminou tudo. Deus não precisa predeterminar tudo para saber de tudo. Sim, Ele predetermina muitas coisas, mas não tudo. [...] A maior prova de que a onisciência divina não é fruto de predeterminação é que a Bíblia diz que Deus conhece até mesmo o futuro contingente condicional. O futuro contingente condicional não é aquilo que acontecerá, mas aquilo que aconteceria se as circunstâncias e as decisões fossem outras. Ou seja, Deus não sabe só o que vai acontecer, mas também ‘o que aconteceria se’”.

“O exemplo clássico desse tipo de conhecimento divino é o da oração de Davi acerca do povo de Queila (1Sm 23.1-13). Davi perguntou a Deus se era verdade o que tinha ouvido de que Saul estava descendo à cidade de Queila para pegá-lo, e Deus respondeu que sim, num caso clássico de conhecimento do futuro causal. Porém, na sequência, Davi perguntou também se o povo de Queila, mesmo depois de tudo que Davi fizera por eles contra os filisteus, mesmo depois de recebê-lo tão bem com os seus homens, o trairiam mais à frente, entregando-o a Saul na primeira oportunidade; e Deus respondeu que sim, que entregariam, e Davi então saiu dali, de maneira que o povo de Queila nunca traiu a Davi”.

“Esse é um caso de conhecimento de um futuro contingente condicional. Eles não fizeram, mas Deus sabia que ‘eles fariam se’. Ora, se há um futuro contingente condicional, e Deus o conhece, isso significa que Ele não precisa predeterminar todas as coisas para saber todas as coisas”.

4) Afirma ainda o irmão Franklin: “Diferente do que o autor afirma, quase todos os grandes teólogos medievais criam na predestinação, seguindo em maior ou menor grau o que Agostinho ensinou no século V: Próspero, Gottschalk, Anselmo, Bernardo, Bradwardine, Tomás de Kémpis e Tomás de Aquino (cf. S. Th: I, q. 23, a. 1, a. 2, a. 4, a. 7, a. 8; I-IIae, q. 117, a. 5; II-IIae, q. 174; III, q. 24, a. 1, a. 3). Os pré-reformadores Jan Hus e John Wycliffe também afirmaram o ensino da predestinação em moldes agostinianos”.

Nesse ponto, concedo que houve um excesso da minha parte ao desprezar 100% de todo e qualquer vestígio da compreensão agostiniana em relação à mecânica da Salvação durante a Idade Média. Antes de tudo, é óbvio que, depois de Agostinho, seria natural se ver ainda entre os pensadores medievais alguma influência aqui e acolá do seu ensino a respeito da mecânica da Salvação, mas é importante que se diga duas coisas sobre esse assunto e que se constituem as razões pelas quais acabei tomando essa posição exagerada de ignorar completamente essas referências.

Em primeiro lugar, não se pode dizer que algum dos nomes citados pelo irmão seguiu à risca o que Agostinho ensinou a respeito da mecânica da Salvação – nem Próspero de Aquitânea, nem Anselmo, nem Bernardo, nem Bradwardine, nem Thomas a Kempis, nem Tomás de Aquino. O próprio irmão reconhece isso ao falar que eles seguiram em “maior ou menor grau” o que Agostinho disse. De todos eles, só o monge Gottschalk foi, aparentemente, o mais fiel.

E em segundo lugar, o irmão afirma que “quase todos os grandes teólogos medievais criam na predestinação [agostiniana]”, dando a entender que a posição agostiniana referente à mecânica da Salvação era, se não majoritária, pelo menos de grande influência na Idade Média, quando, na verdade, ela não foi nem majoritária, nem de grande influência na época de nenhum desses nomes, mas muito ao contrário.

Para começar, o monge leigo francês Próspero de Aquitânia (390-460) não pode ser considerado um teólogo medieval, porque a Idade Média começa oficialmente em 476. Além disso, ele foi contemporâneo e discípulo direto de Agostinho (354-430), razão pela qual é natural que tenha seguido 100% o seu mentor – pelo menos no início. Próspero escreveu a primeira vez contra os hereges pelagianos enquanto seu mentor Agostinho era vivo, e ele estava apenas reverberando o seu ensino. Portanto, estamos falando de um discípulo direto de Agostinho defendendo seu mentor em vida, em meio ao debate contra os hereges pelagianos.

Ora, assim como Próspero, houve muitos que, em meio ao calor do debate entre Pelágio (350-423) e Agostinho, aderiram em um primeiro momento àquele pensamento novo de Agostinho acerca da mecânica da Salvação, principalmente aqueles que eram discípulos dele – como é o caso de Próspero. Nada mais natural. A questão é que, depois das condenações a Pelágio em 417, 418 e 431, mesmo a maioria concordando que Pelágio era um herege, essa mesma maioria não concordaria com os excessos de Agostinho na questão da mecânica da Salvação, tanto que o próprio Próspero, que era um ardoroso defensor de seu mentor tanto contra pelagianos quanto contra semipelagianos, no final da vida, “abandonou certas posições intransigentes de Agostinho” (In “Autores citados na Suma Teológica – I Seção da II Parte”, in “Suma Teológica IV”, Loyola, 2005, p. 23), de maneira que havia uma “nítida diferença entre a posição de Próspero em [sua obra] De vocatione e a posição do Agostinho velho e do Próspero jovem, especialmente sobre a interpretação de 1 Timóteo 2.4 e sobre a predestinação” (YOUNG, F.; EDWARDS, M.; e PARVIS, P. (editores); Studia Patristica – papers presented at the Fourtheenth International Conference on Patristic Studies held in Oxford 2003, volume XLIII, Augustine and Other Latin Writes, PEETERS, 2006, p. 493 e seguintes).

Quanto ao monge alemão Gottschalk de Orbais (804-869), que talvez tenha sido, nos mil anos pós-Agostinho, o seu mais fiel seguidor, quando ele começou a pregar a predestinação agostiniana após estudar sozinho, sem influência direta de alguém, os escritos do bispo de Hipona, teve seu ensino rejeitado pela esmagadora maioria dos de sua época, tendo sido duramente combatido, numa clara prova de como esse tipo de ensino era “aceito” ou “influente” naquela época.

O pobre do Gottschalk, além de condenado por heresia no Concílio de Mogúncia em 848, foi lamentavelmente surrado e proibido até de pisar no território do imperador carolíngeo Luís, o Germânico, que compreendia um terço da Europa na época. Ele tentou, então, ganhar a simpatia dos cristãos do outro dos três territórios carolíngeos da época (o de Carlos, o Calvo), mas foi condenado no Concílio de Kierzy em 849 pelas mesmas heresias, sendo que desta vez foi pior: além de ser removido do seu sacerdócio, foi, lamentável e cruelmente, chicoteado, obrigado a jogar ele mesmo no fogo seus escritos e foi trancafiado em um mosteiro. Depois de apelar a amigos para que o ajudassem, viu cinco deles escreverem em favor de seus ensinos, mas os escritos destes foram logo combatidos pelo bispo Incmaro de Reims, dentre outros. Resultado: apesar da persistência de Gottschalk e seus amigos, os ensinos dele foram condenados em sequência nos Concílios de Kiersy em 853, de Valência em 855, de Langres em 859 e de Savonnières também em 859. Todos esses concílios reprovaram a predestinação dupla agostiniana e asseveraram que a predestinação se dá pela presciência divina.

Anselmo e Bernardo, por sua vez, foram menos consistentes que Gottschalk em sua fidelidade à visão agostiniana da mecânica da Salvação. E o que dizer do arcebispo britânico Thomas Bradwardine (1290-1349), que pregava a dupla predestinação, mas não cria na depravação total, dizendo que o pecado original não teria causado consequências mais graves sobre a natureza humana? E que também cria na importância das boas obras para a complementação da justificação e da remissão dos pecados (sic)? Pode-se considerá-lo um “calvinista” ou “monergista” de fato, 100%? Ademais, o bispo Bradwardine lamentava em seus escritos que, nos seus dias, só ele ainda acreditava na doutrina agostiniana da mecânica da Salvação.

Os escritos de Bradwardine sobre o assunto até chegaram a ser lidos em Oxford e Paris, mas foram esmagadoramente ignorados ou, quando repercutidos, rejeitados pelos teólogos da época e pela igreja. Até seu companheiro Thomas Buckingham, quando se manifestou sobre o assunto, foi para combater o que ensinava seu colega. Ao bispo Bradwardine restou apenas o consolo de aparentemente ter influenciado, como o irmão Franklin lembra, o pré-reformador John Wycliffe, que já defende um posicionamento bem mais próximo de Calvino e do Lutero do início da Reforma. Wycliffe, por sua vez, influenciou Huss. Aliás, Wycliffe e Huss, que ainda são Idade Média, foram um total esquecimento meu. Talvez porque minha mente tende a ver Wycliffe e Huss como um capítulo à parte, por terem sido pré-reformadores. Bradwardine já não se encaixa nesse perfil.

Enfim, se eu fosse traçar uma linha rigorosa depois de Agostinho, eu colocaria na Idade Média apenas Gottschalk, Wycliffe e Huss.

Quanto ao alemão Thomas a Kempis (1380-1471), a verdade é que ele não escreveu nenhuma obra sobre o assunto. A única coisa que é empunhada pelos calvinistas como prova “incontestável” de seu agostinianismo em relação à mecânica da Salvação é um pequeno trecho de sua obra A Imitação de Cristo que apenas sugere agostinianismo. Nada mais. Não se tem nada de Thomas a Kempis que deixe definitivamente claro qual seu pensamento sobre o assunto. O mais engraçado é que sua obra A Imitação de Cristo enfatiza muito a prática da vida cristã, a dedicação espiritual cristã, tendo sido influência decisiva na visão espiritual de ninguém menos que o semipelagiano Erasmo de Roterdã e o arminiano John Wesley, que se opuseram a essa visão agostiniana da mecânica da Salvação.

Em suma, não estamos falando de uma doutrina que teve livre e intensa circulação, que tenha sido amplamente sustentada e ensinada na Idade Média, mas de um ensino reprovado esmagadoramente durante todo esse período e que teve, claro, como uma série de outros ensinos reprovados naquela época, uma ou outra pessoa que excepcionalmente a defendeu em menor ou maior grau.

Não se pode citar esses nomes como prova de que a visão agostiniana da mecânica da Salvação era de grande influência na Era Medieval. Aliás, se a posição deles fosse tão comumente aceita em suas épocas, Lutero, no início da Reforma, e Calvino, mais à frente, não causariam nenhuma espécie em seus dias quando a ensinassem. O ensino dos católicos jansenistas, que vieram logo depois, também seria normalmente aceito pela igreja da época. Todos reconheceriam que só era mais uma corrente dentre tantas outras aceitas naquela época, não é mesmo?

Amanhã, prossigo sobre esse tópico, falando de Tomás de Aquino. E, claro, também falarei amanhã, se Deus permitir, sobre outros questionamentos e/ou objeções levantadas pelo irmão Franklin.



SILAS DANIEL RESPOSTA PARTE 2

Hoje, darei continuidade ao tópico 4 das minhas observações sobre as objeções levantadas pelo irmão Franklin Ferreira ao meu artigo “Em Defesa do Arminianismo”, publicado na edição 68 da revista Obreiro Aprovado (CPAD, jan/mar-2015). Vamos lá.

De todos os nomes mencionados pelo irmão Franklin para tentar sustentar que a visão agostiniana da mecânica da Salvação era uma corrente comumente aceita no período medieval, Tomás de Aquino é, para mim, um capítulo especial, um capítulo à parte. Por quê? Porque a menção do seu nome pelo irmão Franklin me dá a oportunidade de esclarecer um terrível engano que tem sido popularizado por teólogos calvinistas nos últimos anos: que o antes tão desprezado Aquinate – desprezado inclusive por Calvino – teria sido um “calvinista”.

Ora, Aquino pensava diferentemente de Agostinho e muito mais ainda de Calvino sobre a questão da mecânica da Salvação. Seu pensamento sobre esse assunto era, sim, influenciado diretamente por Agostinho, como ele mesmo assume em sua Summa Theologica; entretanto, suas conclusões, no geral, são majoritariamente diversas da de Agostinho, e mais ainda em relação ao pensamento de Calvino.

Em primeiro lugar, Aquino cria na predestinação agostiniana só para os eleitos; ele não cria na predestinação dupla, que foi defendida tanto por Agostinho quanto por Calvino. Apesar de haver passagens aparentemente dúbias de Aquino quanto a isso, de forma geral, o que Aquino chama de “reprovados” não é necessariamente a mesma coisa que predestinados à perdição, mas dizia respeito ao castigo pelos pecados daqueles que deliberadamente preferiram o caminho da perdição. Isso ficará mais claro a seguir, ao analisarmos os dois próximos pontos de divergência entre Aquino, de um lado, e Agostinho e Calvino, do outro. Se não, vejamos.

Em segundo lugar, diferentemente de Agostinho e Calvino, Aquino acreditava que havia duas espécies de salvos: os salvos predestinados e os não-predestinados. E em terceiro lugar, diferentemente de Agostinho e Calvino, Aquino cria que havia salvos que podiam perder a salvação, embora a maioria não pudesse perdê-la.

Sobre esses dois últimos pontos, escreve ele: “Esse livro [O Livro da Vida] é a inscrição dos que são ordenados à vida eterna, à qual alguém é ordenado por duas causas: ou por predestinação divina, que nunca falha, ou pela graça. Pois quem tem a graça por isso mesmo é digno da vida eterna; todavia esta ordenação, às vezes, falha, porque alguns eram ordenados, pela graça recebida, a alcançar a vida eterna e, contudo, a perderam pelo pecado mortal. Por outro lado, os ordenados pela predestinação divina a alcançar a vida eterna estão, absolutamente falando, inscritos no Livro da Vida; porque nele estão inscritos como havendo de alcançá-la em si mesma; e esses não serão nunca dele riscados. Dizemos, porém, que estão inscritos no Livro da Vida, não absoluta, mas relativamente, os ordenados a alcançar a vida eterna, não por predestinação divina, mas só pela graça. Porque nele estão inscritos como havendo de alcançar a vida eterna em sua causa e não em si mesma. E esses podem ser dele riscados” (AQUINO, Summa Theologica, I, 24, 3).

Para Aquino, os salvos predestinados o eram pela graça eficaz e os demais salvos, pela graça suficiente. Para ele, os primeiros não poderiam cair, mas os segundos poderiam eventualmente cair e se perder, sim. Para ele, as passagens na Bíblia que tratavam de um crente verdadeiro perder a salvação se referiam a esse segundo grupo, logo não haveria contradição entre as passagens bíblicas que pareciam falar de uma predestinação incondicional e as passagens bíblicas que enfatizavam não apenas uma responsabilidade humana na salvação, mas também a possibilidade de perdê-la. Essa foi a forma que Aquino encontrou para não fazer a Bíblia “brigar” com a predestinação agostiniana dos eleitos.

Para o primeiro grupo de salvos, a soteriologia de Aquino era 100% agostiniana, mas para o segundo grupo, 100% arminiana: como vimos no final do texto supracitado, embora Deus saiba, pela Sua presciência, aqueles que serão salvos no segundo grupo, permite que seus nomes sejam riscados e recolocados no Livro da Vida conforme suas entradas na e saídas da graça. O argumento da presciência que Aquino usa é exatamente o mesmo esposado por Boécio (480-525), que cria na predestinação com base na presciência: Deus pode saber de tudo sobre o passado, o presente e o futuro simultaneamente porque Ele não está no tempo, mas fora do tempo.

Escreve Aquino sobre a presciência divina: “E ainda que os [futuros] contingentes passem a existir em ato sucessivamente, Deus não os conhece sucessivamente conforme estão em seu ser como nós, mas simultaneamente, pois seu conhecimento, bem como seu próprio ser, tem como medida a eternidade; ora, a eternidade, que é totalmente simultânea, engloba a totalidade de tempo, como acima foi dito. Assim, tudo o que está no tempo está desde toda eternidade presente para Deus; não apenas porque Deus tem presentes as razões de todas as coisas, como alguns o pretendem, mas porque seu olhar recai desde toda a eternidade sobre todas as coisas, como estão em sua presença” (AQUINO, Summa Theologica, I, 14, 13).

Em quarto lugar, diferentemente de Calvino e mais próximo de Agostinho, Aquino não acreditava na inexistência de livre-arbítrio. Aquino afirmava que, mesmo no caso dos salvos do primeiro grupo (os predestinados), o livre-arbítrio continuava existindo, as escolhas das pessoas continuavam a ser reais. Ele justificava isso dizendo que Deus apenas inclinava as vontades dos predestinados, mas não as forçava. Isso porque Aquino crê que há em todos os seres humanos um desejo pela beatitude, só que o desejo pelo mal é muito maior. No caso dos predestinados, Deus não mudaria a vontade deles, mas daria uma espécie de “mãozinha” no desejo pela beatitude em seus corações para garantir a escolha certa deles e, consequentemente, a salvação inevitável deles. Nesse aspecto, Aquino e Agostinho eram o que, criteriosamente, temos de chamar de sinergistas inconsistentes; ou, como alguns preferem chamar, “monergistas defeituosos”.

Asseverava Aquino: “A vontade é livre” (AQUINO, Questões Disputadas, Questão XXII, Artigo 5). E ainda, com todas as letras: “A vontade não pode ser forçada por Deus” (AQUINO, Questões Disputadas, Questão XXII, Artigo 8). E mais: “Ninguém se torna pecador se não por si próprio, e ninguém se torna justo se não pela operação de Deus e por cooperação própria” (AQUINO, Questões Disputadas, Questão XXII, Artigo 9). Isso não é monergismo.

Em quinto lugar, diferentemente de Calvino e Agostinho, Aquino não acreditava em Expiação Limitada. Escreve ele: “A paixão de Cristo não foi uma expiação meramente suficiente, mas uma superabundante expiação para os pecados de toda a raça humana, de acordo com 1 João 2.2: ‘Ele é a expiação pelos nossos pecados, e não somente pelos nossos, mas também pelos de todo o mundo’” (AQUINO, Summa Theologica, III, 48, 2).

Enfim, por todas essas razões, não dá para considerar Aquino um calvinista ou agostiniano. Aquino apenas simpatizava com alguns dos pontos esposados por Agostinho sobre o tema da mecânica da Salvação, discordando de todo o restante – restante este que consistia simplesmente na maioria dos pontos esposados pelo bispo de Hipona sobre o assunto.

Não admira que Calvino e Lutero, diferentemente de alguns calvinistas de hoje, não demonstravam apreço por Aquino. Calvino, inclusive, combateu diretamente a visão de Aquino sobre a predestinação dos eleitos, mencionando o Comentário sobre as Sentenças de Pedro Lombardo, de Aquino, Livro II, Discussão 41 (sobre “A vontade e o pecado”), Artigo 3, onde, entendia Calvino, o Aquinate incluíra algum mérito humano na predestinação:

“Não é procedente a cavilação de Tomás de Aquino de que a predestinação diz respeito à graça mercê da qual extraímos méritos que são objeto da presciência divina. Não faço caso da sutileza de Tomás de Aquino, o qual diz que, ainda que a presciência dos méritos não possa ser chamada de causa da predestinação no que se refere a Deus, que predestina, contudo pode ser assim chamada no que diz respeito a nós, como quando afirma que Deus predestinou a seus eleitos para que, com ela, mereçam a glória. Quando, pois, o Senhor não quer que contemplemos nada na eleição, se não Sua mera bondade, se alguém aqui deseje visualizar algo mais, será por mera afetação. Porque, caso queira porfiar em sutileza, não falta com que repulsemos o próprio minúsculo sofisma de Tomás. Ele pretende provar que a glória é, de certa maneira, predestinada para os eleitos por seus méritos, porque Deus os predestina à glória pela qual merecem a glória” (CALVINO, Institutas, Livro III, Capítulo 22, 9).

Lutero, por sua vez, chegou a chamar Aquino de a estrela que caiu do céu, mencionada em Apocalipse 8.10, e sua Summa Theologica como “a quintessência de todas as heresias” (SCHAFF, Phillip, History of the Christian Church, volume V – The Middle Age –, Eerdmans, 1988, p. 676).

Logo, chega a ser constrangedora essa atitude revisionista de alguns autores calvinistas recentes (e que provavelmente devem ter influenciado o irmão Franklin em sua visão de Aquino) de, na ânsia de construir uma espécie de “forte linhagem histórica calvinista” pós-Agostinho que nunca existiu, querer ver um Aquino que nem Lutero nem Calvino viram, e que, na verdade, nunca houve.

Mais recentemente, a coisa chegou a um ponto ainda mais constrangedor, quando o teólogo calvinista norte-americano Michael Horton, incomodado pelo fato de que não há sequer vestígios de calvinismo nos Pais da Igreja até Agostinho, começou uma “caça” desses vestígios, empreendendo uma maratona de leitura de todos os escritos dos Pais da Igreja antes de Agostinho para ver se encontrava algo que ninguém nunca encontrou. Ele quis descobrir o que nenhum autor calvinista ávido por descobrir encontrou em mais de 400 anos de busca, nem mesmo Calvino, que reconheceu decepcionado que todos os Pais da Igreja eram-lhe contrários (Institutas, Livro II, capítulo II, 9). Resultado: dando “saltos quânticos” de interpretação, Horton distorceu descaradamente o significado de algumas passagens dos Pais da Igreja que publicou em um apêndice de seu livro Putting Amazing Back Into Grace (Baker, 2002) como prova de que o calvinismo estaria presente nos Pais da Igreja pré-Agostinho (sic)!

Horton chegou a inventar a continuação de uma passagem dos escritos de Clemente de Roma, noutros casos traduziu erroneamente o significado claro de alguns vocábulos gregos, além de interpretar algumas passagens divorciadas de seus respectivos contextos ou de outras passagens dos próprios Pais da Igreja citados que clarificavam indubitavelmente o posicionamento destes sobre os temas mencionados nos tais textos mencionados. Enfim, tudo o que não manda a boa hermenêutica (termo que, lembro aos leitores, se aplica não só à área teológica, mas também à interpretação de textos legais e literários de forma geral).

O teólogo arminiano Jack Cottrell foi um dos que expuseram tal atitude (veja AQUI, com uma boa tradução AQUI). Ainda bem que a maioria dos calvinistas mais sérios, talvez por vergonha alheia, não embarcaram nessa do Horton.

Bem, mas voltando a Aquino, ainda que ele tivesse defendido mesmo um posicionamento idêntico ao de Agostinho, o que nunca fez, a verdade é que, diferentemente do que a cultura popular cristalizou, sua teologia não foi voz majoritária do final da Idade Média até o século 19. Após Aquino, já no século 14, as correntes escolásticas de Duns Scot, William de Ockham e a dos averroístas – nenhuma delas defensora da predestinação agostiniana – foram as que prevaleceram, principalmente as duas últimas (BOEHNER, Philotheus; GILSON, Etienne; História da Filosofia Cristã, Editora Vozes, 1982, p. 464). A corrente de Aquino, que nem pode ser considerada um agostinianismo de fato em relação à mecânica da Salvação, era apenas mais uma naqueles dias – respeitada, mas não majoritária. E depois ainda viria a posição molinista, elaborada no século 16 por um espanhol originalmente tomista (o jesuíta Luís de Molina), adotada pelos jesuítas e contra a qual se voltariam, obviamente, os seus demais colegas tomistas - no caso, os dominicanos, porque os jesuítas acabariam aderindo em peso ao molinismo. A briga entre tomistas e molinistas foi uma briga, na  verdade, entre "tomistas-tomistas" e "tomistas-molinistas". A teologia de Aquino só se tornou a posição oficial da Igreja Católica no século 19, após a encíclica Aeterni Patris, publicada em 1879  pelo papa Leão XIII, que era fã declarado de Tomás de Aquino e em uma época em que estava acontecendo um revival da teologia do Aquinate na Igreja Católica. E mesmo depois de se tornar a teologia oficial, no que diz respeito à mecânica da Salvação, a Igreja Católica continua abrigando, ao lado do aquinismo, o semiagostinianismo do Sínodo de Orange e o molinismo, sem ver nenhuma "grande contradição" - segundo ela - entre elas (eu, obviamente, discordo em parte).

Portanto, por qualquer ângulo, não dá para usar Tomás de Aquino como prova da existência de uma linhagem agostiniana de grande influência na teologia cristã durante a Idade Média no que diz respeito ao entendimento da mecânica da Salvação.

P.S.: Como minha exposição sobre Aquino ficou enorme, deixei os demais tópicos que apresentaria hoje para o artigo de amanhã. Até lá!



Silas Daniel Resposta Parte 3

Caros, depois de uma quarta e uma quinta de feriado agitadas em minha vida resolvendo problemas pessoais, finalmente segue outra parte de minhas observações acerca das objeções levantadas pelo irmão Franklin Ferreira ao meu artigo Em Defesa do Arminianismo”, publicado na revista Obreiro Aprovado (CPAD), edição 68 (jan-mar/2015). Antes, porém, de apresentar minhas últimas observações, gostaria de trazer algumas breves reflexões sobre alguns comentários que andei lendo na internet de alguns irmãos em Cristo, assembleianos ou de outras denominações, que têm acompanhado essa série de artigos.

Em primeiro lugar, isso aqui não se trata de uma disputa para ver quem é mais inteligente. Tremenda tolice! Irmão Franklin não precisa disso, nem eu. E o fato de eu discordar de algumas de suas objeções ao meu artigo não muda nada de minha impressão positiva sobre a qualidade do seu trabalho. Aliás, das objeções que me fez, três pelo menos serviram para retificar um excesso meu e clarificar dois pontos em que deixei margem para ser mal compreendido. Ou seja, no final das contas, suas objeções me deram uma excelente oportunidade de clarificar e aperfeiçoar ainda mais o que havia sido dito.

Em segundo lugar, eu não estou escrevendo essa série de artigos como se estivesse querendo converter os calvinistas do Brasil em arminianos. Pelo amor do nosso Senhor! Não tenho a mínima pretensão disso. Estou apenas respondendo a objeções que me foram levantadas publicamente na internet e das quais discordo 100% na maioria dos casos. Se fui objetado nominal e publicamente, e discordo das objeções, nada mais natural do que tratar publicamente delas, e justamente pelo canal onde foram levantadas essas objeções: a internet.

Em terceiro lugar, não fui eu que atravessei a rua para “cutucar” ninguém. Das coisas que eu li nessas discussões de internet, essa foi a mais ridícula de todas.Vejam bem: eu escrevi em uma revista assembleiana, voltada para o público assembleiano, um artigo dirigido aos assembleianos, onde, inclusive, não mencionei ninguém de fora do arraial assembleiano, aí um irmão de outra denominação manifesta publicamente objeções ao meu artigo e sou eu que “cutuquei” alguém? Que lógica é essa?

Agora, eu não deixo de achar curioso que calvinistas de outras denominações estejam super atentos e interessados nesse debate sobre calvinismo e arminianismo dentro da Assembleia de Deus. É realmente curioso (Não que essa seja necessariamente a motivação do irmão Franklin, não afirmo isso, mas pelo menos de alguns). Parece que alguns irmãos calvinistas estão interessados em uma “calvinização” de outras denominações.

Bem, por outro lado, como disse no meu primeiro artigo desta série, é bom saber que irmãos de outras denominações lêem os periódicos assembleianos e, mesmo que involuntariamente, os divulguem.

Em quarto lugar, agradeço pelo carinho e pelas mensagens de apreço que tenho recebido por aqui, por email, na rua e pelo WhatsApp de amados irmãos do Brasil afora que estão acompanhando minha série de artigos. Motivado pelos pedidos de alguns irmãos, talvez eu transforme o conteúdo dessa série de artigos, incluindo entre eles o da revista “Obreiro Aprovado”, em um esboço para um livro sobre o tema arminianismo, onde, claro, tudo estaria muito mais enriquecido do que tudo o que escrevi em “Obreiro Aprovado” e por aqui. Quem sabe? Há outro projeto na frente, mas estou seriamente pensando no assunto.

Dito isso, segue mais uma observação.

5) Ainda sobre meu artigo, irmão Franklin afirma: “Um detalhe que chama a atenção é que ainda que Agostinho seja citado, sua compreensão sobre a predestinação e a graça não é oferecida no texto”.

Não entendi o que o irmão Franklin quis sugerir com isso. Uma apresentação da compreensão de Agostinho sobre a predestinação e a graça não foi feita, mas deixei claro em meu artigo (segue agora o que escrevi lá:) que “o primeiro a propor as teses que seriam chamadas, em um futuro distante, de ‘calvinismo’ foi, como vimos, Agostinho, e isso só no quinto século. Nenhum outro Pai da Igreja, antes ou depois de Agostinho, esposou o ‘calvinismo’”. Acho que ficou claro que o posicionamento dele era essencialmente o mesmo de Calvino, razão pela qual não me detive em apresentá-lo. Ademais, o tema principal do artigo não era Agostinho. E se eu abrisse um parêntese para destrinchar a compreensão do bispo de Hipona, o artigo, que já tinha 17 páginas, estouraria todos os limites de caracteres estabelecidos pela revista, razão pela qual tive que jogar fora muita coisa que havia escrito no artigo bruto.

Mas, como o irmão demonstra interesse sobre uma exposição minha acerca da compreensão de Agostinho sobre a graça, segue alguma coisa a seguir.

Antes, para situar bem historicamente o pensamento de Agostinho sobre a questão, é importante lembrar que, até o debate com Pelágio, ninguém na história do cristianismo havia tido essa compreensão que Agostinho apresentara, como, aliás, reconhece Calvino (Institutas, Livro II, Capítulo II, 9), como reconhece Loraine Boettner (que, aliás, no capítulo 28 de sua conceituada obra The Reformed Doctrine of Predestination, também reconhece que, depois de Agostinho e antes de Lutero, só Gottschalk e Wycliffe parecem ter esposado com certeza o mesmo pensamento), como reconhece  Norman Sellers (SELLERS, Election and Perseverance, Schoettle Publishing Co., 1987, p. 3) etc.

Aliás, essa compreensão de Agostinho foi, além de totalmente independente de tudo que se tinha dito até àquela época sobre o assunto, também tardia. O Agostinho jovem, como todos os cristãos de sua época, não pensava como o Agostinho do debate com Pelágio em diante. Se não, vejamos.

O Agostinho jovem, em sua obra Sobre o Espírito e a Letra, escreveu que o “livre-arbítrio [é] naturalmente implantado [por Deus] dentro do ser humano” (capítulo 4), que Deus predestina com base na sua presciência (capítulo 7) e que “a justiça do homem deve ser atribuída à operação de Deus, apesar de não ter lugar sem a vontade do homem” (capítulo 7).

Na mesma obra, Agostinho ainda pergunta: “Será que nós tornamos nulo o livre-arbítrio pela graça? Deus me livre! Não, antes estabelecemos o livre-arbítrio” (capítulo 52). E mais: “O apóstolo diz: ‘Não há poder que não proceda de Deus’. [...] Em nenhum lugar, no entanto, encontramos na Sagrada Escritura uma afirmação do tipo ‘Não há vontade que não proceda de Deus’. E com razão isso não está escrito, porque não é verdade. Caso contrário, Deus seria o autor do pecado” (capítulo 54).

Por fim, no capítulo 58 da referida obra, depois de afirmar que o livre-arbítrio é dado por Deus ao ser humano, Agostinho arremata: “Deus, sem dúvida alguma, deseja que todos os homens sejam salvos e cheguem ao pleno conhecimento da verdade, mas não lhes tirando o livre-arbítrio, pelo bom ou mau uso do qual é que poderão ser justamente julgados” (capítulo 58).

Só foi mais à frente, em meio à controvérsia com o herege Pelágio, que Agostinho, em seu ímpeto para combater a heresia pelagiana, reinterpretou e relativizou as passagens bíblicas que enfatizam a responsabilidade humana e reinterpretou e enfatizou todas as passagens que falam da ação divina na Salvação.

Em sua obra A Predestinação dos Santos, seção III, capítulo 7, Agostinho conta que mudou de ideia porque deixou de crer que a fé antecede a graça de Deus – isto é, ele deixou de crer que Deus elegia aqueles que, pela Sua presciência, Ele saberia que teriam fé para crer por si mesmos. Ou seja, tecnicamente, o Agostinho antes da disputa com Pelágio era o que podemos chamar hoje de semipelagiano.

Agostinho mudou de ideia porque percebeu rapidamente que essa fé antecedente daria força ao pensamento de Pelágio. Logo, para não cair na sutileza do pensamento de Pelágio, Agostinho radicalizou afirmando que a escolha teria que ser a causa da fé e não a fé a causa da escolha, e que a fé como dom de Deus não significava apenas a capacidade dada ao homem para crer, mas Deus fazendo o homem crer para sua salvação.

Mesmo assim, a soteriologia de Agostinho não era 100% igual a de Calvino. Era praticamente a mesma coisa, eram essencialmente iguais, mas havia detalhes sutis que os diferenciavam. Se não, vejamos.

Em primeiro lugar, diferentemente de Calvino, Agostinho continuava crendo em livre-arbítrio, mas sem saber como essa verdade se coadunava com a sua forma de ver a predestinação – para ele, isso era um mistério, como ele confessa, por exemplo, no final do parágrafo 11 do capítulo VI de sua obra Da Predestinação dos Santos: “Todas as veredas do Senhor são misericórdia e fidelidade [Sl 24.10], mas Seus caminhos são insondáveis [Rm 11.33]. Portanto, a misericórdia pela qual liberta gratuitamente e a verdade pela qual julga com justiça são igualmente insondáveis”.

Agostinho, inclusive, em sua obra Contra Juliano, bispo de Eclano (386-455), negou-se a afirmar que todos os que crêem na existência do livre-arbítrio são pelagianos: “Não é verdade, como você diz, que ‘se alguém diz que há livre-arbítrio no homem é [...] pelagiano ou celestiano’. Um pelagiano ou celestiano é quem não atribui a graça de Deus à liberdade à qual temos sido chamados” (AGOSTINHO, Contra Juliano, livro III, capítulo 2).

Mais à frente, nessa mesma obra Contra Juliano, no Livro IV, capítulo 47, o bispo de Hipona dirá, indignado, ao seu opositor Juliano:

“Você afirma que em outro livro eu disse: ‘O livre-arbítrio é negado se defende-se a graça e a graça é negada se defende-se o livre-arbítrio’. Você me calunia! Isso não é o que eu disse, embora, por causa da dificuldade dessa questão, possa parecer e ser pensado que eu o tenha dito. Eu não me oponho a dar as minhas  palavras exatas, para que os leitores possam ver como você deturpa os meus escritos e como você tira proveito dos incompetentes ou ignorantes que confundem sua loquacidade com argumento. Na última parte do meu primeiro livro a São Piniano, intitulado ‘De gratia contra Pelagium’, eu disse: ‘O problema do livre-arbítrio envolve distinções tão difíceis de fazer que, quando o livre arbítrio é defendido, a graça de Deus parece estar sendo negada; e quando a graça de Deus é afirmada, o livre-arbítrio parece ser negado’. Você, um homem honesto e verdadeiro, deixou de fora algumas das minhas palavras e deu a elas a sua própria construção. Eu disse que é difícil de entender esse problema. Eu não disse que é impossível compreendê-lo. Muito menos eu disse, como falsamente registras, que ‘O livre-arbítrio é negado se defende-se a graça e a graça é negada se defende-se o livre-arbítrio’. Cita minhas palavras corretamente e sua calúnia desaparece. [...] Eu não disse que a graça é negada, mas que parece que a graça é negada. Eu não disse que o livre-arbítrio é negado, mas que pensa-se que o livre-arbítrio é negado”.

Não foi à toa que o teólogo, matemático e astrônomo católico holandês Albert Pighius (1490-1542), no ano de sua morte, em sua obra Sobre o Livre-arbítrio do Homem e a Graça Livre de Deus, apesar de ter errado no seu debate com Calvino e Lutero quanto à compreensão do pecado original, pelo menos acertou parcialmente ao ver uma diferença entre Agostinho e Calvino na questão do livre-arbítrio, o que forçou Calvino a fazer uma retificação sobre o assunto nas suas Institutas na edição de 1559, em relação ao que saíra originalmente na edição de 1539. Eu diria, para resumir, que Calvino deu o passe final que Agostinho faltou dar, pois Calvino negou o conceito de livre-arbítrio, que Agostinho ainda segurava relutantemente. Calvino respondeu ao escrito de Pighius dizendo que não usaria esse termo para se referir à liberdade humana por achá-lo muito impreciso, por chocar-se com o que ele entendia da liberdade humana a partir de sua crença na predestinação dupla, também crida por Agostinho. Agostinho, por sua vez, tentou conciliar, sem sucesso, uma coisa com a outra.

Recentemente, alguns calvinistas tentaram resolver essa diferença sutil entre Calvino e Agostinho, afirmando que a diferença era só de nomenclatura, que Agostinho não usava o termo “livre-arbítrio” no mesmo sentido que era evitado por Calvino, só que essa ginástica de interpretação não convence. É óbvio que Agostinho usa o termo no mesmo sentido usado por ele mesmo antes da controvérsia pelagiana e, muito antes dele, pelos Pais da Igreja, embora encontre dificuldades em sustentar seu significado satisfatoriamente após passar a esposar a crença na predestinação incondicional e dupla. Para ele, como já vimos, era muito difícil manter uma coisa apesar da outra; era algo difícil de se coadunar racionalmente, mas, mesmo assim, sustentava ele ser uma realidade possível.

Enfim, existe uma diferença – pequena, mas existe – entre a compreensão de livre-arbítrio em Agostinho e em Calvino, e que consiste justamente na existência de um pequeno resquício do Agostinho jovem dentro do Agostinho velho, que, na soteriologia de Calvino, foi para o espaço.

Para quem quiser se aprofundar no assunto, há textos interessantes disponíveis na internet, como uma dissertação de mestrado em Ciência da Religião de um ex-aluno da Universidade Mackenzie (vejam AQUI) e, claro, o célebre artigo de Anthony N. S. Lane, professor de Teologia Histórica da Escola de Teologia de Londres, intitulado Calvino acreditava em Livre Arbítrio? (Vejam AQUI), onde ele lembra que “nas Institutas de 1539, Calvino chegou perigosamente perto de ensinar a destruição da vontade”, e que “o desafio de Pighius nesse ponto, tão veementemente rejeitado por Calvino, fez com que este melhorasse seu ensino [sobre esse ponto] pela primeira vez em sua resposta a Pighius, mais tarde na edição de 1559 das Institutas e em outras obras. Calvino estava em débito com Pighius nessa mudança mais tarde dele para esclarecer a sua posição e remover suas ambiguidades”.

Mesmo assim, apesar dessa mudança de Calvino, o professor Lane conclui ao final do seu artigo: “Será que Calvin acreditava em livre-arbítrio? Mesmo o próprio Calvino não podia dar uma resposta clara e inequívoca a esta pergunta. Em diferentes estágios da história do homem, diferentes graus de liberdade são concedidos à vontade. O ensino de Calvino sobre o livre-arbítrio é muito próximo ao de Agostinho. Talvez a maior diferença está na atitude. Agostinho, ao ensinar claramente o cativeiro da vontade e a soberania da graça, teve grande cuidado para preservar o livre-arbítrio do homem. Calvino foi muito mais polêmico em sua afirmação de impotência humana e estava relutante em falar de livre-arbítrio. O que Agostinho tinha cuidadosamente salvaguardado, Calvin, a contragosto, admitiu”.

Em segundo lugar, diferentemente de Calvino, Agostinho cria na possibilidade de um crente genuíno se perder. Explico: dizia ele que só os cristãos eleitos – que o seriam de forma incondicional – perseverariam até o fim e que havia cristãos genuínos que se perderiam, porque não estavam entre os eleitos.

Eis mais uma das diferenças sutis entre Calvino e Agostinho que pouca gente percebe – inclusive, o próprio Calvino, que cita Agostinho mais de 400 vezes nas Institutas, não percebeu isso, caso contrário não teria dito em sua obra A Treatise on the Eternal Predestination of God (nove anos depois da questão levantada por Pighius sobre o livre-arbítrio), que “Agostinho está tão inteiramente comigo que se eu quisesse escrever uma confissão de minha fé, eu poderia fazê-lo com toda a plenitude e satisfação para mim mesmo a partir de seus escritos”.

Por essas e outras, há quem acredite que Calvino conhecia muitos escritos de Agostinho apenas pelo popular resumo de todas as obras do bispo de Hipona escrito na Idade Média por Pedro Lombardo, e muito corrente ainda em seus dias. Se é verdade, não sei. Só sei que, diferentemente de Tomás de Aquino (ver meu artigo anterior), Agostinho afirmava que nenhum dos não-eleitos se salvará (Aquino, como vimos, dizia que alguns deles poderiam se salvar, enquanto todos os predestinados se salvariam), e isso é diferente do que ensinava Calvino também. Essa era a forma de Agostinho driblar aqueles textos bíblicos que falavam claramente da possibilidade de um crente genuíno perder a salvação.

Escreve Agostinho no capítulo 9 de sua obra Sobre a Repreensão e a Graça”, datada de 427 d.C., apenas três anos antes de sua morte (os grifos são meus):

“Se, porém, já sendo regenerado e justificado, ele [o cristão] relapsa de sua própria vontade para uma vida maligna, asseguradamente ele não pode dizer ‘Eu não recebi [a graça de Deus]’, porque de sua própria livre escolha para malignidade ele perdeu a graça de Deus que havia recebido”.

E no mesmo capítulo, mais à frente, ele ainda diz:

“Mas aqueles que não perseveram, e que cairão da fé e da conduta cristãs no fim de suas vidas [...] não há dúvida de que não podem ser contados no número destes [os eleitos], mesmo naquele tempo em que estão vivendo bem e piamente. Porque eles não são feitos para diferir da massa de perdição pelo pré-conhecimento e predestinação de Deus, e, portanto, não são chamados de acordo com o propósito de Deus, e então não são eleitos; mas são chamados entre aqueles a quem é dito ‘muitos são chamados’, não entre aqueles a quem é dito ‘mas poucos escolhidos’. E ainda assim, quem poderia negar que eles são eleitos, desde que creem e são batizados, e vivem de acordo com Deus? Manifestamente, eles são chamados eleitos por aqueles que são ignorantes do que eles de fato são, mas não por Aquele [Deus] que conhece que eles não têm a perseverança que leva o eleito para a vida abençoada, por Aquele que sabe que eles assim permaneceriam [por um tempo] e que depois iriam cair”.

Mas, Agostinho, por que Deus não lhes dá o dom da perseverança então, se você disse antes que eles foram justificados e regenerados de verdade? Eis a resposta de Agostinho, no capítulo 17 da mesma obra:

“Se me tivessem perguntado por que Deus não tem dado perseverança para aqueles a quem Ele deu este amor pelo qual puderam viver cristãmente, respondo que não sei. Pois eu não falo arrogantemente, mas com reconhecimento de minha pequena medida. [...] Até onde Ele condescende em manifestar Seu julgamento para nós, vamos agradecer; mas no ponto em que Ele pensa ser melhor ocultá-lo, não vamos murmurar contra Seu conselho, mas crer que isto é também o mais saudável para nós”.

E logo em seguida, no capítulo 18, Agostinho, para não gerar confusão em seus leitores, faz questão de asseverar mais uma vez que esses de quem ele está falando eram crentes salvos mesmo, e ele ainda reconhece que o que está ensinando parece sem lógica (os grifos são meus):

“É de fato de se admirar, e de se admirar grandemente, que alguns de Seus filhos – os quais Ele verdadeiramente regenerou em Cristo, aos quais Ele deu fé, esperança e amor – Deus não lhes dê perseverança também”.

Um detalhe ainda interessante é que Agostinho cria também que não era possível um cristão genuíno saber em vida se ele era um predestinado. Alguns (não todos) dos calvinistas de segunda onda – os chamados “puritanos” – parece que tinham um pensamento parecido. Escreve Agostinho: “Que tais coisas como essas sejam faladas a santos que perseverarão, como se eles fossem contados incertos se perseverarão, é razão para que eles não devam de outra forma ouvir tais coisas, uma vez que é bom para eles ‘não serem soberbos mas temerem’ (Rm 11.20). Pois quem, na multidão de crentes, pode presumir que, enquanto ele está vivendo neste estado mortal, ele está no número dos predestinados?” (AGOSTINHO, Sobre Repreensão e Graça, capítulo 40).

Ou seja, para Agostinho, nenhum crente realmente salvo deve presumir que perseverará até o fim. Só Deus sabe aqueles que Ele predestinou que irão até o fim. E Deus faz com que eles não saibam justamente para que não relaxem, o que é parte da garantia de que perseverarão. Escreve Agostinho sobre isso:

“Pois acerca da utilidade deste segredo [sobre quem perseverará até o fim, isto é, quem são os predestinados], Deus o faz assim para que [...] todos, mesmo que estejam bem, devam temer, pois não se sabe quem conseguirá. Acerca da utilidade deste segredo, deve ser crido que alguns dos filhos da perdição, que não receberam o dom da perseverança para o fim, começam a viver em fé com obras de amor, e vivem por algum tempo fiel e justamente, e mais tarde caem, e não são levados dessa vida antes que isso aconteça a eles. [...] [Dessa forma,] os homens terão este bem saudável temor, pelo qual o pecado da presunção é afastado, apenas até que eles possam alcançar a graça de Cristo pela qual vivem piamente, e depois o tempo de se assegurarem que jamais se afastarão dEle” (AGOSTINHO, Sobre Repreensão e Graça, capítulo 40).

Agostinho sintetiza tudo ao final: “Eles recebem a graça de Deus, mas apenas para uma estação, e não perseveram; eles deserdam e ficam deserdados. Eles, pelo seu próprio livre-arbítrio, como não têm recebido o dom da perseverança, são arrancados pelo justo e oculto julgamento de Deus” (AGOSTINHO, Sobre Repreensão e Graça, capítulo 42).

Por fim, quero acrescentar que, além de Próspero de Aquitânia, o maior discípulo e propagador da soteriologia de Agostinho quando este ainda estava em vida e mesmo após a morte dele, ter mudado depois sua posição em relação a Agostinho em alguns pontos importantes (como mencionei no primeiro artigo desta série), os discípulos radicais da soteriologia agostiniana foram repreendidos em sínodos ainda no quinto século. O presbítero Lúcido, líder de um grupo deles, teve seus ensinos condenados e sua retratação assinada nos Sínodos de Arles e Lião, ambos realizados no ano 473, pouco mais de 40 anos após a morte de Agostinho. A retratação elaborada pelo Sínodo e assinada por Lúcido dizia, por exemplo, o seguinte:

“A vossa repreensão é salvação pública, e vossa sentença, medicina. Portanto, também eu considero como sumo remédio desculpar-me, acusando os erros passados, e purificar-me com salutar confissão. Por isso, segundo as recentes decisões do louvável Sínodo, condeno convosco a sentença que diz que o esforço da obediência humana não é para ser conjugado à graça divina; que diz que, depois da queda do primeiro homem, foi extinto totalmente o arbítrio da vontade; que diz que não foi pela salvação de todos que Cristo, nosso Senhor e Salvador, assumiu a morte; que diz que a presciência de Deus impele com violência o homem à morte, ou seja, que aqueles que se perdem, se perdem por vontade de Deus; [...] que diz que uns são destinados à morte, outros predestinados à vida. [...] Condeno todas essas coisas como ímpias e sacrílegas. Afirmo, porém, a graça de Deus deste modo, que sempre mantenho unido o esforço do homem e o impulso da graça, e declaro que  a liberdade da vontade humana não foi extinta, mas atenuada e enfraquecida, e que aquele que se salvou está no perigo e o que se perdeu teria podido salvar-se”.

“Também afirmo que Cristo, nosso Deus e Salvador, no que concerne às riquezas da Sua bondade, ofereceu o preço da morte por todos e não quer que ninguém se perca, Ele que é o Salvador de todos os homens, de modo particular dos que crêem, rico para com todos os que o invocam. E, dado que a respeito de realidade tão importante se deve dar satisfação à consciência, recordo-me de ter dito anteriormente que Cristo viera somente para aqueles dos quais tinha presciência de que acreditariam. Agora, porém, com base na autoridade dos sagrados testemunhos que se encontram em abundância nos textos das divinas Escrituras, trazidos à luz pela reflexão da doutrina dos antigos, de bom grado professo que Cristo veio também por aqueles que se perderam, pois foi contra a Sua vontade – de Cristo – que se perderam. De fato, não é lícito dizer que as riquezas da imensa bondade e os benefícios divinos sejam restritos somente aos que, pelo que se vê, são salvos. Pois, se dizemos que Cristo trouxe os remédios somente para aqueles que foram remidos, parece que absolvemos os não remidos, dos quais consta que devem ser punidos por desprezarem a redenção”.

“Afirmo ainda que, que através da ordem e sequência dos séculos, na esperança da vinda de Cristo, alguns se salvaram pela lei da graça, outros pela lei de Moisés, outros pela lei da natureza que Deus escreveu no coração de todos; mas que nenhum deles, desde o início do mundo, foi absolvido do laço do pecado – original – senão pela intercessão do sagrado sangue.”

“Professo ainda que para pecados capitais são preparados fogos eternos e chamas infernais, já que merecidamente, para as culpas humanas que são sustentadas até o fim, se segue a sentença divina, na qual incorrem com justiça aqueles que não creram de todo o coração nestas realidades”.
“Orai por mim, santos senhores e padres apostólicos! Eu, presbítero Lúcido, subscrevi de minha própria mão esta carta, e confirmo o que nela está escrito, e condeno o que nela é condenado” (DENZINGER, Heinrich; HÜNERMAN, Peter; Compêndio dos Símbolos, Definições e Declarações de Moral, Loyola e Paulinas [coedição], 2007, pp. 123 e 124).

Pois bem, nesses sínodos, são condenados os ensinos da expiação limitada, da inexistência de livre-arbítrio, do monergismo, da graça irresistível, da predestinação incondicional e dupla, e da impossibilidade de um crente salvo cair da graça. Lembrando ainda que o Concílio de Orange, de 529, por ocasião da condenação ao semipelagianismo, condenou simultaneamente a predestinação dupla agostiniana.

Aliás, por falar de semipelagianismo, só agora, depois de uma resposta do irmão Franklin Ferreira a um artigo do irmão Zwinglius Rodrigues, consegui entender o que ele quis dizer quando afirmou que eu havia apenas mencionado, mas não definido (em meu artigo em Obreiro Aprovado) o que era o semiagostinianismo ou semipelagianismo. Na verdade, temos visões históricas diferentes sobre esse assunto, por isso houve ruído de comunicação no meu entendimento sobre sua observação acerca desse tópico do meu artigo.

Explico: sem mencionar o nome de João Cassiano, o Sínodo de Orange condenou o ensino atribuído a ele, mas que não era exatamente o que ele ensinava. João Cassiano não ensinava exatamente aquilo que lhe foi atribuído e recebeu a pecha de “semipelagianismo”. Como disse em meu artigo em “Obreiro Aprovado”, João Cassiano e seus seguidores, que posteriormente seriam chamados de semipelagianos – mas que eram admiradores de Agostinho e por isso eram conhecidos originalmente como semiagostinianos – ensinavam que Deus poderia dar início à fé em alguns casos, mas em outros era o próprio homem que dava o initium fidei, o primeiro passo para a Salvação. Ou seja, Cassiano não ensinava terminantemente que era o homem que dava o início; ele não dizia que Deus nunca dava o início, mas afirmava que algumas vezes Deus dava o início e outras vezes, não (CASSIANO, Conferência XIII, capítulos 10, 11 e 12). O que o Sínodo de Orange condenou terminantemente foi a ideia de que é o homem que dá o início.

Inclusive, quando Próspero de Aquitânia, após a morte de Agostinho, escreveu contra João Cassiano acusando-o de heresia e apelando às autoridades eclesiásticas contra ele, “nenhuma medida foi tomada contra Cassiano”, porque as autoridades eclesiásticas da época entendiam simplesmente que “não havia razão para tal” (In ESPÍRITO SANTO, Arnaldo do, João Cassiano e a Regra de São Bento, artigo da revista Humanitas, volume L, 1998, Universidade de Lisboa, p. 303).

A gente só sabe disso hoje porque os escritos de Cassiano sobre o assunto existem até hoje. Se não fosse isso, teria ficado definitivamente para a posteridade que Cassiano ensinava que Deus nunca dava início, só o homem – e é o que se popularizou, mas não é verdade. Por isso sou daqueles que, em vez de fazer diferença entre os termos semiagostinianismo e semipelagianismo, preferem usar simultaneamente ambos os termos para se referir ao cassianismo, e deles prefiro mais o termo semipelagianismo, tão somente porque, como explico no meu artigo em Obreiro Aprovado, é o termo mais popular para se referir a esse equívoco doutrinário.

Lembremos que o termo “semipelagianismo” só foi criado no século 17 (GIRAUD, Cesare, Num só Corpo – Tratado Mistagógico sobre a Eucaristia, Loyola, 2003, p. 14), mais precisamente pelo protestantismo. Até antes disso, os cassianistas eram considerados apenas cassianistas ou semiagostinianos.

Enfim, sou daqueles que, como o historiador Justo L. Gonzales, considera correto ambos os termos – semipelagianismo e semiagostinianismo – para se referir ao cassianismo, com a diferença de que Gonzales prefere mais o termo “semiagostinianismo” (GONZALEZ, Justo L. Uma História do Pensamento Cristão, volume 2, São Paulo, Cultura Cristã, 2004, p.58), e eu, por questão de popularidade do termo, prefiro mais semipelagianismo, embora concorde com o termo semiagostinianismo sem problema algum.

Um detalhe interessante é que como o Sínodo de Orange não condenou os escritos de João Cassiano, mas apenas aquele detalhe de um de seus ensinos, sua obra e nome continuaram sendo respeitados tanto no Ocidente quanto no Oriente. Se bem que a Igreja Oriental, justamente porque a decisão do Sínodo de Orange, mesmo sem mencionar Cassiano, toca claramente em um aspecto do seu ensino, não aceita até hoje a decisão daquele conclave. A visão sobre a mecânica da Salvação da Igreja Oriental é, oficialmente, até hoje, “semiagostiniana” ou “semipelagiana”, como queiram rotular. Para ficar mais claro: ela é cassianista.
Ademais, como afirma Gonzales na mesma obra, apesar de os teólogos católicos depois de Orange continuarem a respeitar a autoridade de Agostinho para vários assuntos, a maioria deles acabou, na prática, interpretando o tema da mecânica da Salvação na Bíblia à luz dos escritos de teólogos como Cassiano.
Aqui termino o quinto tópico de minhas observações. Devido ao fato de que falta ainda outras observações finais e, além disso, este artigo de hoje ficou igualmente enooorme, segue amanhã o quarto e último artigo. Eram três, mas, pela demanda dos temas, se tornaram quatro. No próximo, se Deus quiser, concluo minhas observações.



Silas Daniel Resposta Parte 4


Hoje, segue a quarta parte da minha série de artigos com observações às objeções do irmão Franklin Ferreira ao meu texto Em Defesa do Arminianismo, publicado na revista Obreiro Aprovado (CPAD), edição 68 (janeiro/março-2015).

Antes de prosseguir, porém, quero responder rapidamente a um email que recebi recentemente de um irmão em Cristo simpatizante do calvinismo (avisei ao referido irmão que responderia por aqui). Ele tem dois questionamentos sobre o que falei nos últimos artigos. As colocações desse amado irmão são, em síntese, as seguintes: (1) Se a doutrina do pecado original só foi elaborada por Agostinho, não seria melhor desconsiderarmos, nessa questão da mecânica da Salvação, a opinião dos Pais da Igreja que o antecederam? Além disso, (2) o que nós conhecemos como arminianismo só teria surgido no século 17, porque o que reinou na igreja nos seus primeiros séculos foi o semipelagianismo, logo o que ficaria conhecido como calvinismo seria muito mais antigo, porque surgiu ainda no século 5 d.C.

Ora, em primeiro lugar, conquanto Agostinho tenha sido o primeiro a ter se preocupado – por razões óbvias (a questão do batismo dos infantes e o pelagianismo) – em desenvolver a doutrina do pecado original (termo que aparece pela primeira vez em Orígenes), antes dele havia, entre alguns Pais da Igreja, declarações alinhadas com o conceito. Antes de Agostinho, você encontra tanto Pais da Igreja – a minoria – com posicionamentos semelhantes ao dele nesse sentido, em declarações isoladas aqui e ali (essas passagens costumam ser enfatizadas tanto por teólogos católicos quanto por protestantes), quanto Pais da Igreja que defendiam o que posteriormente seria chamado pelos teólogos da Igreja Ortodoxa de “pecado ancestral”, e que eram a grande maioria.

Logo, uma vez que você não vai encontrar, antes de Agostinho, nenhum dos Pais da Igreja defendendo predestinação incondicional, expiação limitada, graça irresistível e impossibilidade de um crente cair da graça, mas vai encontrar ou Pais da Igreja defendendo o conceito que seria denominado depois de “pecado original” ou Pais da Igreja defendendo o que depois seria designado como “pecado ancestral”, podemos afirmar que, tecnicamente, os Pais da Igreja antes de Agostinho esposavam ou aquilo que seria posteriormente chamado de semipelagianismo ou aquilo que posteriormente seria designado como arminianismo. A única diferença é que os termos semipelagianismo e arminianismo só seriam cunhados no século 17, mas, como pensamento, eles já existiam desde o período mais primevo da Igreja. O calvinismo, por sua vez, que surgiu como nomenclatura em fins do século 16, surgiu, como pensamento, pelo menos em essência, no século 5 com Agostinho.

Em segundo lugar, uma vez que, logo após Agostinho, os Sínodos de Arles e Lião em 473 condenaram a predestinação dupla, a predestinação incondicional, a graça irresistível, a expiação limitada e a impossibilidade de um salvo em Cristo cair da graça; e o Sínodo de Orange, que condenou outra vez a dupla predestinação, condenou, do ensino de João Cassiano e seus discípulos, apenas a crença de que, em alguns casos, o initium fidei poderia ser do homem, não condenando o ensino de João Cassiano e seus discípulos de que a predestinação é só em relação aos crentes, nem o ensino destes de que a predestinação se dá com base na presciência, nem o ensino destes de que a graça pode ser resistida, nem o ensino destes de que a expiação é ilimitada, e muito menos o ensino destes de que é possível o crente cair da graça, logo a doutrina bíblica que resta de Arles, Lião e Orange é o que tecnicamente seria chamado séculos depois de arminianismo. Porém, isso não significa dizer que a Igreja Medieval era arminiana; apesar das decisões desses conclaves oficiais, ela acabou se tornando, na prática, como já disse nos outros artigos, majoritariamente semipelagiana. E no final da Idade Média e início da Era Moderna, pela influência das visões ockhamista, averroísta e scotista da mecânica da salvação, além do contexto de idolatria, simonia e supersticiosidade popular dentro da Igreja Católica nesse período, ela se tornou, na prática, mais pelagiana que semipelagiana, o que provocou a Reforma Protestante.

Portanto, como defendi em meu artigo em Obreiro Aprovado, o arminianismo clássico é “o que melhor representa o posicionamento da Igreja sobre a questão soteriológica ao longo da história”.

Aproveitando, vai aqui uma reflexão importante sobre o semipelagianismo: embora seja indubitavelmente um equívoco doutrinário, ele não é um equívoco tão grave, como afirmam muitos calvinistas, uma vez que João Cassiano ensinava que mesmo quando era o homem que dava o initium fidei (possibilidade que tanto os arminianos quanto os calvinistas rejeitam à luz do texto sagrado), ainda assim este dependia do auxílio divino, sem a qual a Salvação seria impossível (Conferências XIII, capítulos 10, 11 e 12); e durante a história e ainda hoje, os irmãos semipelagianos têm crido dessa forma. Ademais, se o semipelagianismo fosse um equívoco doutrinário tão grave, a maioria esmagadora dos crentes genuínos de hoje e de todas as épocas estaria perdida, porque a grande massa de cristãos sinceros durante a história tem sido, ou por convicção ou – na maioria dos casos – por falta de um melhor entendimento do ensino bíblico acerca da mecânica da Salvação, semipelagianos. E como escrevi em meu artigo de Obreiro Aprovado, ninguém é salvo pelo entendimento perfeito da mecânica da salvação, mas pela aceitação do método e da mensagem da salvação.

No Céu, este arminiano que vos escreve e os demais irmãos que perseverarem até o fim iremos encontrar, com certeza, um grande número de salvos em Cristo que, em relação à compreensão da mecânica da Salvação, eram, na Terra, semipelagianos.

Mas, vamos agora ao quinto tópico das objeções.

5) Escreve o irmão Franklin: “O mais surpreendente é quando o autor afirma que Lutero abrandou a posição afirmada em seu tratado ‘Da vontade cativa’, e que passou a crer na possibilidade de se cair da graça (lendo erroneamente os Artigos de Esmacalde III.42-45, que, na verdade, refutava distorções anabatistas). Ao tratar de uma mudança de ênfase na teologia de Lutero, ele cita Herman Bavinck como fonte, mas não mencionou que este autor também afirmou que Lutero ‘nunca reverteu sua posição sobre predestinação’, e que os ‘verdadeiros luteranos’ rejeitaram o sinergismo de Filipe Melanchthon (‘Teologia Sistemática’, v. 2, p. 364)”.

Em primeiro lugar, não sou eu apenas que afirmo isso: vários teólogos luteranos e não-luteranos reconhecem, como este escriba, que Lutero abrandou a sua posição afirmada em De servo arbítrio e que o texto da seção III.42-45 dos Artigos de Esmalcade é claro quanto à crença de Lutero na possibilidade de um cristão genuíno cair da graça. Ademais, não apenas esse trecho dos Artigos de Esmalcade comprovam isso.

Em segundo lugar, ao citar Bavinck, eu não afirmei em nenhum momento que Lutero abandonou sua posição específica sobre o ponto “predestinação”, mas, sim, que Lutero, como reconhece o próprio Bavinck, logo depois de escrever Da Vontade Cativa ("De servo arbítrio"), “evitou progressivamente a doutrina especulativa da predestinação”. E na sequência, eu é que acrescentei que, nessa segunda fase de sua vida, Lutero não parou por aí, mas foi mais além, se opondo, “a 3 ensinos que se tornariam depois 3 dos 5 pontos da Tulip calvinista”.

Outro detalhe: no texto original que tive de diminuir, eu citava vários autores que falam das mudanças de Lutero ao final de sua vida em relação ao tema da mecânica da Salvação, mas, como precisava cortar texto para que o artigo pudesse entrar na revista, deixei propositadamente apenas aquela passagem de Bavinck, justamente para ressaltar, aos meus leitores que eventualmente simpatizam com o calvinismo e conhecem esse célebre autor calvinista, que embora seja comum vermos calvinistas dizendo insistentemente – e equivocadamente – que “Lutero foi mais calvinista do que o próprio Calvino”, até mesmo teólogos calvinistas como Bavinck reconhecem, mesmo que relutantemente, que Lutero não foi “mais calvinista do que o próprio Calvino”, pois reconhecem que, no final de sua vida, o reformador alemão colocou em detrimento a doutrina da predestinação em seu ensino. O problema apenas é que teólogos calvinistas como Bavinck geralmente só mencionam esse fato, silenciando totalmente para o fato também de que Lutero foi muito mais além do que isso. Mesmo nunca tendo revertido oficialmente sua posição sobre a predestinação, ele não apenas colocou essa doutrina como a entendia em detrimento dentro do seu ensino, como também terminou sua vida, como informei em meu artigo, negando 3 dos chamados 5 pontos do calvinismo.

Entre os muitos teólogos que ressaltam claramente a mudança do pensamento de Lutero sobre a mecânica da Salvação estão, por exemplo, entre os mais antigos, o pastor e teólogo luterano Teodósio von Harnack (1817-1889), o pastor e teólogo luterano Emil Brunner (1889-1966), o pastor e teólogo metodista Albert Nash (1828-1893), o historiador Kaspar Brandt (1653-1696) e até mesmo – embora timidamente – o teólogo calvinista Louis Berkhof (1873-1957), sem falar do próprio Philip Melanchthon; e entre os mais recentes, temos, por exemplo, o pastor e teólogo luterano canadense Bart Eriksson; o teólogo luterano Douglas A. Sweeney, professor e chefe do Departamento de História da Igreja e História do Pensamento Cristão do Trinity Evangelical Divinity School; o pastor luterano Don Matzat, articulista da revista Modern Reformation; o pastor batista John Arkenberg, mestre em História da Igreja e História do Pensamento Cristão; e o teólogo John Weldon, doutor em Religião Comparada e mestre em Apologética Cristã.

Em sua obra Luthers Theologie (“A Teologia de Lutero”), volume I, pp. 148 a 190, Teodósio von Harnack, que era considerado um dos maiores especialistas sobre a Teologia de Martinho Lutero no século 19 e não deve ser confundido com seu filho Adolf von Harnack, assevera, citando vários textos do próprio Lutero, a mudança clara de pensamento do reformador alemão sobre a questão da mecânica da Salvação no final da sua vida. Emil Brunner, que cita T. von Harnack em sua célebre Dogmática, volume I, assevera o mesmo. Mais precisamente, logo depois de afirmar que, após Agostinho, apenas o monge Gottschalk, o tomista Bradwardine e Wycliff pregaram realmente a predestinação agostiniana (embora, como eu já disse, Bradwardine negava outros pontos caros para o agostinianismo e o calvinismo no que concerne ao entendimento da mecânica da Salvação – ver meu primeiro artigo desta série), Brunner afirma, na sequência, a respeito do pensamento de Lutero sobre o assunto (os grifos são meus):

“Lutero, também, em sua obra De servo arbitrio, argumentou o determinismo estrito de Bradwardine até suas últimas consequências, com extrema, para não dizer brutal, lógica. Entretanto, no ensino de Lutero, esta não foi a sua última palavra [sobre o assunto]. Esse determinismo predestinarianista foi posteriormente desmentido por sua nova compreensão da Eleição, adquirida a partir de uma nova visão sobre o Novo Testamento. Lutero, é verdade, não revogou o que ele disse em De servo arbitrio; mas, a partir de 1525 em diante, o seu ensino era diferente. Ele tinha se libertado da formulação agostiniana desse problema e também do raciocínio causal de Agostinho. Ele viu que essa doutrina da predestinação era teologia natural especulativa, e entendeu a ideia bíblica da Eleição em e através de Jesus Cristo”.

“[...] Se, antes de 1525, e especialmente em De servo arbitrio, Lutero nega explicitamente o universalismo da vontade divina da salvação, agora ele enfatiza a verdade de que Deus em Cristo nos oferece, como seu único arbítrio, o Evangelho da Graça – ‘Nee est praetur hunc Christum alius Deus aui aliqua Dei voluntas quarenda’ – e para isso ele acrescenta que quem especula sobre a vontade de Deus fora de Cristo perde a Deus (40, I, 256). Em Cristo, o Crucificado, ‘tu conheces a esperança certa da misericórdia de Deus para ti e toda a raça humana’ (ibid., 255). Ele agora faz uma distinção explícita entre o universalismo da promessa e o particularismo da maneira em que o mundo vai acabar: ‘Porque  o Evangelho oferece a todos os homens, é verdade, o perdão dos pecados e a vida eterna por meio de Cristo, mas nem todos os homens aceitam a promessa do Evangelho, e o fato de todos os homens não aceitarem a Cristo é culpa deles mesmos... ‘Interim manet sententia Dei et promissio universalis’ [‘Nesse meio tempo, ele {o Evangelho} continua a ser uma sentença de Deus e uma promessa universal’]... Pois é a vontade de Deus que Cristo deve ser um ‘communis omnium thesaurus’ [‘Um tesouro comum a todos’]... Mas os incrédulos resistem a essa vontade graciosa de Deus’(Erl. Ed., 26, 300)”.

“Assim, doravante, ele faz uma distinção entre o universalismo da vontade divina da salvação e o particularismo no Juízo Final, e toda a culpa pela ruína do homem é colocada na própria conta deste: ‘Non culpa verbi quod sanctum est et vitam offert, sed sua culpa quod hanc salutem quae offertur rejiciunt’ (40, 2, 273). É no fato da incredulidade do homem que a doutrina da dupla predestinação começa, pois é dito que a causa da incredulidade do homem é derivada da vontade de Deus e, portanto, se dá a partir do ‘decreto’ de Deus. Aqui, no entanto, segue-se o ponto de virada decisivo no pensamento de Lutero. De 1525 em diante, ele adverte a seus ouvintes contra a busca de um decreto divino escondido desse tipo. Em tons exaltados, ele exorta os seus alunos, em suas palestras sobre Gênesis: ‘Vos igitur qui nunc me auditis, memineritis me hoc docuisse, non esse inquirendum de praedestinatione Dei absconditi. Sed ea aquiescendum esse quae revelatur per vocationem et per ministerium verbi. Ibi enim potes de fide et salute tua certus esse’. A graça de Deus em Jesus Cristo – este é o verdadeiro ‘beneplacitum Dei Patris' [‘O prazer de Deus, o Pai’]’ (43, 463)”.

“Lutero percebe que a questão da predestinação está fora da esfera da revelação cristã e da fé, e que é uma questão de teologia natural especulativa. É a teologia escolástica especulativa que faz a distinção entre uma ‘voluntas signi’ (‘a vontade revelada’) e uma ‘voluntas beneplaciti’, a eleição divina insondável ou rejeição. [...] Em tudo isso Lutero percebeu duas verdades: em primeiro lugar, que a doutrina tradicional da predestinação, como ele mesmo tinha tomado de Agostinho, é uma teologia especulativa e, portanto, não cria um verdadeiro conhecimento de Deus, mas, pelo contrário, leva os homens ao desespero; e, por outro lado, que a verdadeira doutrina da predestinação é simplesmente o conhecimento da eleição em Jesus Cristo através da fé. Assim, neste ponto, como em tantos outros, Lutero libertou o Evangelho do fardo da tradição que tinha quase totalmente obscurecido-o, e ele mais uma vez baseia a verdade teológica sobre a revelação de Deus em Jesus Cristo” (BRUNNER, Emil, Dogmatic, volume I, The Christian Doctrine of God, The Westminster Press, pp. 342- 345).

Além de T. von Harnack e Brunner, o pastor e teólogo metodista Albert Nash (1828-1893), em sua obra Perseverance and Apostasy, de 1870, assevera: “Na parte inicial de sua carreira, Lutero aparece favorecendo algumas das mais estritas visões de Agostinho, porém, mais tarde em sua vida, adotou sentimentos em harmonia com o ensino subsequente de Arminius. O mesmo deve ser dito de Melanchthon” (NASH, Albert, Perseverance and Apostasy: being a argument in proof of the Arminian Doctrine, N. Tibbals & Son, Nova Iorque, 1871, pp. 5 e 6).

E além de T. von Harnack, Brunner e Nash, o próprio teólogo calvinista Louis Berkhof admite essa mudança em Lutero, embora o faça timidamente.

Na página 101 de sua Teologia Sistemática (Cultura Cristã), Louis Berkhof começa afirmando que “todos os reformadores do século 16 defenderam a mais estrita doutrina da predestinação” (grifos meus). Aí, na frase seguinte, ele mesmo começa a relativizar o que disse. Ele mal começa o parágrafo e já se contradiz. Diz Berkhof na sequência: “Esta afirmação é verdadeira mesmo quanto a Melanchthon em seu período inicial”. Sim, ele está certo ao afirmar que Melanchthon começou defendendo “a mais estrita doutrina da predestinação”; entretanto, uma vez que o reformador alemão mudou muito cedo sua visão inicial sobre esse assunto, e estamos falando aqui ainda do século 16, Berkhof deveria, só por isso, já retificar o que disse na frase anterior, afirmando em seu lugar: “Ainda no século 16, nem todos os reformadores mantiveram a mais estrita doutrina da predestinação”.

Mas, para piorar, Melanchthon mudou de pensamento juntamente com Lutero e com a concordância deste (Veremos isso daqui a pouco). Aliás, o próprio Berkhof, na frase subsequente, reconhece a mudança em Lutero, ao afirmar que “Lutero aceitava a doutrina da predestinação, se bem que a convicção de que Deus queria que todos os homens fossem salvos o levou a enfraquecer um tanto a doutrina da predestinação nos últimos tempos de sua existência” (grifos meus). Ou seja, Berkhof admite que não foi simplesmente Melanchthon que mudou de posição: o próprio Lutero mudou.

A verdade é que, quando a Reforma Protestante não tinha nem chegado aos seus 20 anos de existência, Lutero, o pai da Reforma, já enfraquecera a doutrina da predestinação nos moldes que seriam chamados posteriormente de calvinistas, e isso é simplesmente a primeira metade do século 16. Portanto, mais certo ainda seria o irmão Berkhof gravar em sua obra: “Ainda no século 16, nem todos os reformadores mantiveram a mais estrita doutrina da predestinação, a começar do pai da Reforma: Lutero”.

Berkhof continua: “Ela [a doutrina da predestinação nos moldes agostinianos] foi desaparecendo gradativamente da teologia luterana, que agora a considera, total ou parcialmente (reprovação),como condicional. Calvino [ao contrário] sustentou firmemente a doutrina agostiniana da predestinação dupla e absoluta” (grifos meus). Correto. Faltou só dizer que esse “gradativamente” foi ainda na primeira metade do século 16, antes mesmo de a Reforma chegar a 20 anos de existência, e com seu fundador – Lutero – vivo, ativo e aquiescendo.

Mas, como adiantei no início, não são apenas esses teólogos mais antigos que asseveram o que afirmei. John Arkenberg e John Weldon, por exemplo, na nota 2-3 de sua bem conhecida obra Catholics and Protestants: Do They Now Agree?, elogiada e recomendada por calvinistas como R. C. Sproul, John McArthur Jr e D. James Kennedy, e lançada originalmente em 1995, ressaltam igualmente a mudança de pensamento de Lutero, citando especificamente a questão do cair da graça. Frisam eles (os grifos são meus): “Embora Lutero concordasse que os méritos de Cristo eram a única base da justificação de um homem, e que esta não dependia de forma alguma de ações do homem, Lutero ainda pensava que um homem pode perder a sua justificação se ele, finalmente e totalmente, se afastar de Cristo. Uma vez que o dom do perdão dos pecados e a vida eterna dados por Deus são apropriados pela fé, se um homem decidir não descansar mais seu destino eterno em Cristo e totalmente voltar-se contra Ele, Lutero acreditava que só assim este homem poderia perder a sua salvação.Em outras palavras, o único pecado que Lutero pensou que poderia causar a perda da salvação é o pecado da apostasia sem arrependimento”.

Sobre esse mesmo assunto, o pastor e teólogo luterano canadense Bart Eriksson escreve (os grifos são meus): “Um tema que encontramos [...] [nos escritos de Lutero] é a possibilidade de cristãos perderem a sua salvação, de caírem para longe da graça. O pensamento luterano ao longo dos anos tem sublinhado que é possível cair para longe da salvação, e Lutero acreditava dessa forma. Os teólogos luteranos dos primeiros duzentos anos após Lutero – um período normalmente referido como a era da ‘Ortodoxia Luterana’ – também ensinaram que era possível para os cristãos perderem a sua salvação (SCHMID, H., The Doctrinal Theology of the Evangelical Lutheran Church, 5ª edição, The Lutheran Bookstore, 1876, pp. 459 e 482). A ideia de que os cristãos podem perder a sua salvação também mostra-se em uma série de lugares nas confissões luteranas (Luther’s own Smalcad Articles, pp. 308, 310 e 315, e na Formula of Concord Epitome, artigo IV, seção 19, p. 477, no The Book of Concord [“O Livro de Concórdia”], edição e tradução de Theodore G. Tappert, Fortress Press, 1959)”.

Prossegue Eriksson: “Aqui está uma das declarações dos Artigos de Esmalcade de Lutero [Eriksson passa a citar, então, um trecho da seção III, artigos 42-45]: ‘É, portanto, necessário conhecer e ensinar que quando pessoas santas (...) caem em pecado aberto – como Davi caiu em adultério, homicídio e blasfêmia –, a fé e o Espírito retirou-se delas’. Agora, os teólogos luteranos não retiram essa noção de algum chapéu. A ideia que podemos perder a nossa salvação é retirada diretamente dos ensinamentos do apóstolo Paulo. [...] Lutero reflete sobre esses ensinamentos de Paulo em seu comentário à Epístola aos Gálatas de 1535, quando ele escreve que ‘aos que pecam por causa da sua fraqueza, mesmo que o façam muitas vezes,  não lhes será negado o perdão, desde que se levantem novamente e não persistam em seus pecados, porque resistir ao pecado é o pior de tudo’ (Ibid., p. 80). Ele, então, continua a dizer, a respeito de Gálatas 5.19: ‘Diferentes pessoas são tentadas de maneiras diferentes, de acordo com a diversidade de sua constituição e atitude. Uma pessoa está sujeita a sentimentos mais burilados, outra a (...) mais óbvios, tais como o desejo sexual, a raiva ou o ódio. Mas aqui Paulo exige de nós que andemos no Espírito e resistamos a carne. Qualquer um que cede à carne e persiste na presunçosa gratificação de seus desejos deve saber que não pertence mais a Cristo; embora ele possa orgulhar-se muito e sempre do título de ‘cristão’, ele está apenas enganando a si mesmo’ (Luther’s Work, volume 27, p. 81)”.

Continua Eriksson: “As citações de Lutero sobre esse assunto estão em perfeito acordo com o que vemos nas Escrituras e nas Confissões Luteranas que juramos pregar. Vale a pena lembrar que durante as nossas cerimônias de ordenação de pastores luteranos somos conclamados a não dar ‘alguma ocasião para a falsa segurança ou a esperança ilusória’ (Occassional Services, Augsburg Publishing House, 1995, p. 194). Se formos fieis às Escrituras, às Confissões Luteranas e aos ensinamentos de Lutero, que concorda com todos esses outros documentos, temos de reconhecer que a persistência deliberada no pecado não é uma questão trivial. Além de prejudicar a nós mesmos e aos outros, o pecado deliberado e persistente pode causar uma brecha no nosso relacionamento com Deus, uma queda da graça. [...] Lutero e nossas confissões afirmam que pode-se perder a salvação se houver persistência no pecado” (ERIKSSON, Bart, Luther on Sin and Salvation: Implications for the Homossexuality Debate, Sínodo de Alberta, Canadá, junho de 2005, no site da Igreja Evangélica Luterana do Canadá – www.elcic.ca).

O pastor luterano norte-americano Don Matzav, por sua vez, escreve sobre o pensamento de Lutero: “Ao lidar com a questão da eleição e da predestinação, Lutero compreendeu o impasse em que se chega ao manter ao mesmo tempo a depravação total do homem, a graça universal e a eleição de indivíduos por Deus, mas ele nunca tentou harmonizar esses ensinamentos. Ele temia que seria forçado a fazer concessões que violam a verdade bíblica. Lutero acreditava que a eleição divina era a causa da nossa salvação e que essa doutrina era para o conforto do crente. [...] [Entretanto,] apesar de aceitar a eleição divina, Lutero se recusou a abraçar as conclusões lógicas que levavam a uma expiação limitada para os eleitos e à graça irresistível. Ele manteve a graça universal e o poder do homem de resistir e rejeitar o Evangelho. Para Lutero, era um mistério. No que diz respeito a investigar essa doutrina, ele escreveu: ‘Não estamos autorizados a investigar, e mesmo que você investigue muito, você nunca irá descobrir’. A doutrina da predestinação não foi central na teologia de Lutero. A substância da ‘sola gratia’ ou ‘somente a graça’ não estava na doutrina da eleição, mas na cruz de Jesus Cristo” (MATZAV, Don, Martin Luther and the Doctrine of Predestination, revista Issues, Etc, outubro de 1996, volume 1, número 8).

Quanto à afirmação de Bavinck de que os “verdadeiros luteranos” rejeitaram o sinergismo de Melanchthon, trata-se de uma tremenda distorção da história.

Ainda no século 16, luteranos e calvinistas divergiram profundamente devido não apenas à questão da Santa Ceia, mas também devido à clara diferença de visão entre eles sobre a mecânica da Salvação à luz da Bíblia. Brunner, na página 345 do volume I de sua obra supracitada, lembra que a controvérsia entre luteranos e calvinistas na segunda metade do século 16 não foi apenas por causa da visão diferente sobre a Santa Ceia, embora esse tenha sido o ponto mais em destaque, mas também porque aqueles “seguiram os ensinamentos posteriores de Lutero” que eram contrários aos ensinos calvinistas sobre a mecânica da Salvação (Ibid., p. 345).

Um dos resultados diretos dessa divergência entre luteranos e calvinistas no século 16 foram os Artigos Saxões de Visitação anexados ao Livro de Concórdia em 1593, elaborado pelos luteranos W. Mamphrasiu, A. Hunnius, J. Löner, M. Mirus, G. Mylius, dentre outros, para organizar e esclarecer a fé luterana em oposição exatamente ao ensino calvinista de seus dias (Veja-o AQUI). Lá, lemos, no artigo IV:

“Da Predestinação e da Providência Eterna de Deus – A doutrina pura e verdadeira das nossas Igrejas neste artigo:

“1) Que Cristo morreu por todos os homens e, como o Cordeiro de Deus, levou os pecados do mundo inteiro”.

“2) Que Deus não criou homem algum para a condenação, mas quer que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade. Ele, portanto, chama a todos para ouvir a Cristo, seu Filho, no Evangelho; e promete, por sua audição, a virtude e a operação do Espírito Santo para a conversão e salvação”.

“3) Que muitos homens, por sua própria culpa, perecem: alguns, que não vão ouvir o evangelho a respeito de Cristo; alguns, que novamente caem da graça, seja por erro fundamental ou por pecados contra a consciência”.

“4) Que todos os pecadores que se arrependem serão recebidos em favor; e ninguém será excluído, apesar de seus pecados serem vermelhos como sangue; uma vez que a misericórdia de Deus é maior do que os pecados do mundo inteiro, e Deus se compadece em todas as suas obras”.

“[...] Da falsa e errada doutrinas dos calvinistas sobre a predestinação e a Providência de Deus:

“1) Que Cristo não morreu por todos os homens, mas apenas para os eleitos”.

“2) Que Deus criou a maior parte da humanidade para a condenação eterna, e não é da sua vontade que a maior parte se converta e viva”.

“3) Que o eleito e regenerado não pode perder a fé e o Espírito Santo, ou ser condenado, embora eles cometem grandes pecados e crimes de toda espécie”.

“4) Que aqueles que não são eleitos estão necessariamente condenados, e não podem chegar à salvação, ainda que sejam batizados mil vezes, e recebam a eucaristia todos os dias, e levem uma vida irrepreensível como sempre pode ser conduzido”.

Os teólogos do período chamado (não por acaso) de “Ortodoxia Luterana” – Leonhard Hutter (1563-1616), Johann Gerhard (1582-1637), Johann Quensteldt (1617-1688), David Hollaz (1646-1713) etc –, defenderam a posição luterana contra a minoria simpática ao calvinismo. Em meio a esse combate, dois deles – Quensteldt e Hollaz – chegaram até mesmo a ir além das mudanças empreendidas por Melanchthon e Lutero, ensinando também a predestinação com base na presciência divina. Enfim, fato é que, desde o início das divergências, os luteranos influenciados pelo calvinismo foram minoria. Como informa o teólogo luterano Douglas A. Sweeney, “os luteranos se inclinaram mais para os arminianos do que para os calvinistas sobre algumas das questões doutrinárias que dividiam os dois grupos” (AQUI). Mas, segundo a versão calvinista, a esmagadora maioria – ou seja, a “Ortodoxia Luterana”, que era anticalvinista – é que representava os “falsos luteranos”; e a minúscula minoria, que era criptocalvinista e foi voz vencida, é que representava os “verdadeiros luteranos”. Essa é uma leitura completamente equivocada dos fatos.

Ademais, não é verdade que entre os reformadores no século 16 só havia diferenças sutis no que diz respeito à doutrina da mecânica da Salvação. J. I. Packer costuma dizer que o calvinismo, como definido no Sínodo de Dort, que traz a posição que ele esposa pessoalmente sobre como funciona a mecânica da Salvação, é um círculo fechado: não há como você negar um dos cinco pontos e sustentar os demais. Se Packer está certo, então não se pode considerar diferenças sutis aquelas esposadas entre os reformadores do século 16 no que diz respeito à mecânica da Salvação.

Albert Nash, na sua obra supracitada, citando os escritos de Simão Espicopius (1583-1643), o mais fiel discípulo de Arminius, ressalta que (grifos meus) “nos dias de Calvino, alguns teólogos [protestantes] recusaram receber as doutrinas ensinadas por ele. Alguns letrados e piedosos homens objetaram suas visões como novidades perigosas, e em alguns lugares tumultos foram criados por estas novidades” (NASH, Ibid., p. 6). Friso: Episcopius, nascido menos de 20 anos depois da morte de Calvino, tendo vivido como criança e adolescente ainda no século 16, sublinhava que, ainda “nos dias de Calvino”, houve divergências quanto ao ensino deste entre os teólogos protestantes. E ele não estava aludindo apenas aos luteranos.

Diferentemente do que diz Berkhof, “todos os reformadores” não defenderam “a mais estrita doutrina da predestinação”. Não se pode falar de “mais estrita”, uma vez que, por exemplo, eram contra a predestinação dupla, contra o supralapsiarianismo e esposavam a doutrina bíblica da expiação ilimitada os mártires protestantes ingleses Hugh Latimer e Thomas Cranmer, bem como Heinrich Bullinger (1504-1575), sucessor de Zwinglius na Suíça, e seu sucessor Rudolf Gwalther (1519-1586), além dos reformadores Wolfgang Musculus (1497-1563), Erasmus Sarcerius (1501-1559) e Myles Covardale (1488-1569).

Só quanto ao tópico Expiação Limitada, e só no século 16, eram contrários Lutero, Melanchthon, William Tyndale, Oecolampadius (Ecolampádio), Bullinger, Wolfgang Musculus, Pierre Viret, Peter Martyr Vermigli, Hugh Latimer, Thomas Cranmer, Myles Coverdale, Erasmus Sarcerius, Heinrich Bullinger, Rudolf Gwalther, Zachary Ursinus, Jacob Kimedoncius, David Paraeus, Robert Rollock, William Bucanus, Batholomaeus Keckermann, dentre outros menos ilustres. E lembremo-nos mais uma vez que os luteranos, de forma geral, não divergiam só quanto a isso.

Todos essas pessoas e grupos representavam, simplesmente, a maioria dos pensadores protestantes do século 16. E olha que nem estou incluindo nessa história os radicais anabatistas, que surgiram bem no início da Reforma e por razões óbvias não são contados aqui (embora entenda que possa haver quem conteste essa minha omissão).

E o que dizer do reformador holandês Joannes Anastasius Veluanus (1520-1570)? Propositalmente, cito-o à parte, para ressaltar a injustiça cometida quanto à sua memória durante muito tempo. Ele foi perseguido, preso e torturado pela Inquisição católica, mas saiu da masmorra para continuar pregando o Evangelho, tendo a sua obra The Layman’s Guide, de 1554, se tornado uma das obras protestantes mais lidas em toda a Holanda na segunda metade do século 16. Nela, Veluanus, além de pregar contra a justificação pelas obras, contra a veneração dos santos, contra o papado, contra a confissão auricular, contra a doutrina da transubstanciação (sua posição, nessa questão, era similar à de Zwinglius), também ensinou, décadas antes de Arminius, o que seria chamado posteriormente de arminianismo. Mesmo assim, Veluanus é praticamente desconhecido pelo grande público. Por quê? Porque seu nome foi rapidamente enterrado dentro da história do protestantismo holandês pelos calvinistas daquele país logo quando estourou a controvérsia entre arminianos e calvinistas no início do século 17.

Fizeram isso logo com um dos nomes mais importantes da história da Igreja Reformada da Holanda, apenas porque, décadas depois de sua morte, ele se tornaria um exemplo contundente e inconveniente de oposição à predestinação calvinista dentro do movimento reformado holandês ainda em seu início.

Na controvérsia entre arminianos e calvinistas no início do século 17, os seguidores de Arminius lembravam a seus opositores que Veluanus já ensinara o que eles defendiam, e que este sempre fora, até aquela época, uma figura respeitada por todos os protestantes holandeses. Bastou que isso acontecesse para que, após o Sínodo de Dort, o nome de Veluanus, antes tão respeitado, fosse propositada e completamente enterrado na história da Igreja Reformada Holandesa, até que, em 1912, a Igreja Reformada Holandesa, reconhecendo a injustiça cometida contra um de seus principais nomes, prestou uma homenagem de mea culpa a Veluanus; e em 1994, ainda foi erigida uma estátua em reconhecimento e homenagem ao reformador holandês em frente à Igreja Reformada Holandesa de Garderen (Veja AQUI).

Portanto, é equivocado o que alguns calvinistas afirmam de que a posição de Calvino sobre a mecânica da Salvação era aceita por Lutero e todos os demais reformadores com apenas divergências praticamente irrelevantes entre eles. Essa é uma lenda que os dados históricos desmentem.

O próprio pensamento arminiano surgiu dentro do calvinismo ainda no século 16, e só pôde surgir porque já havia, bem no início do calvinismo, divergências internas entre os seus adeptos no que concerne a algumas questões relativas à mecânica da Salvação. Só foi possível o pensamento arminiano aflorar dentro do protestantismo porque não havia unanimidade dentro do protestantismo desde seu início sobre a predestinação em moldes estritos como ensinada por Calvino – não havia naquela época e, até mesmo dentro do próprio calvinismo, se formos criteriosos, nunca houve em época alguma.

O arminianismo é a consequência natural e inevitável desses questionamentos advindos desde o início da Reforma. E ele foi tão forte no início do século 17 que os calvinistas tiveram que se mobilizar e conquistar apoio político para combater a “ameaça”. Com o supralapsariano fanático do Gomarus levando às últimas consequências sua divergência com Arminius e a questão política entrando no meio mais à frente, a coisa se tornou uma crise (Sim, a questão política estava no meio, e mostrarei isso documentalmente no próximo artigo). No final, porém, apesar da perseguição aos arminianos imposta pelo Sínodo de Dort, historicamente o arminianismo venceu: há mais arminianos no mundo hoje do que calvinistas.

Antes de Arminius morrer, todas as assembleias diante das quais ele apresentou seu pensamento não acharam nada demais o teor da divergência entre ele e os calvinistas mais ortodoxos, porque o espírito de divergência entre os protestantes até aquela época não havia chegado ainda ao tom inquisidor que o Sínodo de Dort, influenciado pelo contexto político, marcaria. Inclusive, como prova disso, um detalhe importante é que os seguidores de Arminius não eram apenas pessoas que passaram a crer como ele depois que começaram a ouvir suas palestras sobre o assunto, mas gente também que já pensava como ele e que o defendeu quando Gomarus criou a controvérsia, e que citavam Veluanus. Até mesmo o próprio Arminius, que já não era simpático ao supralapsiarianismo, não mudou completamente sua posição sobre o entendimento da mecânica da Salvação do nada, mas depois de ouvir – na intenção de combatê-los – os argumentos de alguém que já pensava como ele pensaria depois essa questão: o teólogo, filósofo, artista e político holandês Dirck Volkertszoon Coornhert (1522-1590). Ao estudar Romanos 9 a 11 à luz dos argumentos de Coornhert, Arminius capitulou em seu calvinismo.

Coornhert, que é considerado um dos pais da Renascença Holandesa, concordava, como tantos em sua época, com a compreensão de Veluanus sobre a doutrina da predestinação. Alguns, infelizmente, classificam erroneamente Coornhert de “anabatista”. A verdade é que Coornhert nunca aderiu ao anabatismo ou a qualquer outro grupo, tendo manifestado posição independente em toda a sua vida. Ele foi um opositor do catolicismo e, ao mesmo tempo, discordava do que ele considerava excessos dos cristãos reformados de forma geral. Coornhert era também contra o Estado adotar uma posição dogmática em relação à fé e contra a pena capital para os hereges.

O luteranismo só não teve problema similar ao que o calvinismo teve, vendo sair de dentro dele o arminianismo, porque Lutero e Melanchthon, sabiamente, passaram a entender, diferentemente do que defendiam no início da Reforma, a doutrina da mecânica da Salvação à luz da Bíblia. Essas mudanças que fizeram ao final garantiram uma “tensão” que unifica doutrinariamente os luteranos até hoje. Se bem que os luteranos norte-americanos, no final do século 19 e início do século 20, teriam ainda uma briga homérica sobre a questão da eleição, se ela é condicional ou incondicional (Atualmente, o Sínodo de Missouri afirma que ela é incondicional e o Sínodo de Ohio, que é condicional).

Mas, voltemos a Lutero e Melanchthon.

É extremamente equivocada a ideia de que foi Melanchthon que mudou tudo sozinho, “traindo” o pensamento de Lutero. Os fatos mostram exatamente o contrário.

Como disse em meu artigo em Obreiro Aprovado, Lutero, em 1516, pregou a expiação limitada em seu célebre Comentário aos Romanos, mas em 1533, já em seu Sermão para o Primeiro Domingo do Advento, ele mudou radicalmente sua posição, passando a pregar a expiação ilimitada (nessa época, a Reforma tinha apenas 16 anos de existência). Mas não só ali: Lutero e Melanchthon escreveram juntos uma carta ao Conselho da Cidade de Nuremberg, datada de 18 de abril de 1533, sobre a controvérsia naquela cidade acerca das confissões pública e privada de pecados, afirmando, ambos, a doutrina da expiação ilimitada; e em seus Sermões no Evangelho de João de 1537, comentando João 1.29, Lutero defendeu a mesmíssima coisa.

E em 1537, na seção III, parágrafos 42 a 45 dos Artigos de Esmalcade, escritos pelo próprio Lutero como resumo de toda doutrina luterana, ele afirma o que não pode ser mais claro do que o sol sobre a possibilidade de um crente genuíno, regenerado, cair da graça. Antes disso, porém, já na Confissão de Augsburgo de 1530, escrita por ele e Melanchthon conjuntamente, lemos ambos afirmando no artigo 12: “Aqui se rejeitam os que ensinam não poderem voltar a cair aqueles que já uma vez se tornaram piedosos”.

Lembrando que não foi só nesses documentos que Lutero defendeu a possibilidade de um cristão genuíno cair da graça. Ele defendeu o mesmo na seção XII do seu Catecismo Maior, que é a seção que trata Sobre a Oração do Senhor, e exatamente no tópico sobre a Sexta Petição (“Não nos deixes cair em tentação”); no seu comentário sobre a passagem de 2 Pedro 2.22; e no seu comentário sobre Gálatas 5.4, dentre outras passagens de seus escritos, algumas delas já citadas neste artigo.

Ademais, quando Melanchthon escreveu em 1527 o seu Comentário aos Colossenses, ele apresentou ali, pela primeira vez, uma posição sobre a questão do livre-arbítrio diferente da de Lutero em De servo arbitrio, escrito dois anos antes, e Lutero não só aprovou o pensamento de Melanchthon como prefaciou a obra dele e encheu de elogios a interpretação de Melanchthon. Em 1527, na briga de Melanchthon com o antinomista João Agrícola, Melanchthon defendeu uma posição praticamente sinergista e Lutero o apoiou. E em 1536 e 1537, quando Melanchthon foi criticado por Conrado Cordatus, Jacob Schenck e Nicolau Amsdorff por defender exatamente uma posição sinergista, Lutero apoiou Melanchthon outra vez. Em 1543, três anos antes de Lutero morrer, Melanchthon, na reedição de sua principal obra Loci Communes, escreveu claramente que o livre-arbítrio é real e que a graça pode ser resistida, e Lutero não escreveu uma linha para reprová-lo. Ao contrário, elogiou a ortodoxia de Melanchthon. Para ser mais preciso, Melanchthon defendeu a ideia de que “Deus move as mentes a quererem, mas nós devemos concordar” (RIETH, Ricardo Willy, O pensamento teológico de Filipe Melanchthon (1497-1560), artigo da revista Estudos Teológicos, volume 37, número 3, 1997, São Leopoldo, Escola Superior de Teologia da IECLB, p. 233). Nos 27 anos de convivência entre eles, Lutero só discordou mesmo de Melanchthon em relação à sua posição sobre a Santa Ceia – a posição deste era igual à de Martin Bucer, que foi provavelmente um mentor de Calvino. Enfim, como afirma o teólogo luterano Ricardo Willy, hoje, “graças à maior pesquisa sobre a teologia do Lutero maduro, passou-se a enfatizar mais a proximidade entre sua teologia e a de Melanchthon” (Ibid., p. 235).

Portanto, quando Melanchthon defendia posições diametralmente opostas à essência do calvinismo ainda no início do calvinismo, não é verdade que ele estava se afastando de seu líder e mentor, mas ele estava, bem ao contrário, honrando-o, seguindo-o, corroborando-o em detrimento do posicionamento radical de Calvino. Aliás, o próprio Melanchthon ressaltou que ele não estava mudando nada, mas apenas sendo fiel à mudança do pensamento de Lutero ao final da vida. Em um de seus escritos, ele enfatizou que o pensamento que estava esposando sobre “a predestinação”, sobre “o assentimento da vontade”, sobre a “necessidade de nossa obediência” e sobre “o pecado mortal” que os calvinistas discordavam era o mesmo de Lutero no final de sua vida (BRANDT, Kaspar, The Life of Arminius, p. 10).

Resumindo, o pensamento final de Lutero sobre essa questão foi o seguinte:

1) Ele cria na depravação total, mas vendo, ao final, o livre-arbítrio mais como Agostinho o via do que como Calvino o via (sobre as diferenças de compreensão acerca de livre-arbítrio entre Agostinho e Calvino, ver meu artigo anterior).

2) Ele não cria em predestinação dupla.

3) Ele cria em expiação ilimitada.

4) Ele negava que Deus compele ou força as pessoas a se converterem, chegando a inserir, pouco antes de morrer, na edição de 1546 de sua obra De servo arbitrio, uma nota sobre a questão da necessidade e da contigência enfatizando isso: “Eu desejaria de fato que uma outra melhor palavra tivesse sido introduzida na nossa discussão do que a usual ‘necessidade’, que não é aplicada corretamente tanto para a vontade divina quanto para a vontade humana. Ela tem um significado muito duro e incongruente para essa finalidade, pois sugere uma espécie de compulsão, e o oposto de boa vontade, embora o tema em discussão não implica tal coisa.  Pois nem o divino nem a vontade humana fazem o que fazem, seja bem ou mal, sob qualquer compulsão, mas por puro prazer ou desejo, como acontece com a verdadeira liberdade. (...) A inteligência do leitor deve, portanto, suprir o que a palavra ‘necessidade’ não expressa...”.

Há até quem ponha em dúvida se Lutero autorizou a inserção desta nota mesmo, já que essa edição saiu depois de sua morte. Só que a nota foi inserida para publicação antes de sua morte e pelo seu fiel editor Georg Rörer, que havia editado as obras de Lutero nas últimas décadas de sua vida, tendo se tornado, inclusive, seu editor único e oficial desde 1537 e sido designado o responsável por imprimir, pela primeira vez, suas Obras Completas. Até uma versão rival dessa obra em Jena incluiu a nota acrescida por Lutero (KOLB, Robert, Bound Choice, Election, and Wittenberg Theological Method: From Martin Luther to the Formula of Concord, Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 2005, pp. 26 e 27). Ademais, esse questionamento só surgiu muito tempo depois, quando da controvérsia calvinista. Além disso, no próprio texto original do De servo arbitrio, Lutero, que chegou a apresentar a vontade humana nesse livro apenas como um cavalo domado ou por Deus ou por Satanás, chegou, em certo trecho (II.8), a contraditoriamente negar alguma compulsão divina: “Quando Deus trabalha em nós, a vontade é mudada sob a doce influência do Espírito de Deus. (...) Ela deseja e age, não por compulsão, mas por seu próprio desejo e espontânea inclinação”. Ou seja, Deus influencia, ele não força ou compele.

Finalmente, o Lutero maduro acreditava que a graça que opera sobre aquele que aceita a Cristo é tão eficaz para a salvação quanto aquela que opera sobre o não cristão, com a diferença de que aquele não resiste a ela, sem a qual não poderia ser salvo de forma alguma, enquanto este será condenado tão somente porque resiste a ela. Dizia ele que o cristão que não resiste tem, sim, a “mãozinha” de Deus que o leva a isso, mas isso não significa compulsão, porque precisa haver uma concordância real do ser humano. Contraditoriamente à sua crença de que a graça pode ser resistida, Lutero sustentava ainda a doutrina da predestinação sem base na presciência, afirmando, porém, de forma radical, que nenhum crente deveria se importar com a doutrina da predestinação, porque se tratava de uma doutrina impossível para a mente humana entender. Disse Lutero:

“A disputa sobre a predestinação deve ser totalmente evitada. Staupitz me disse: ‘Se você quiser disputar sobre a predestinação, comece com as chagas de Cristo, e ela cessará. Mas se você continuar a debater sobre isso, você vai perder Cristo, a Palavra, os sacramentos e tudo mais’. Eu esqueço tudo sobre Cristo e Deus, quando eu venhopara estes pensamentos, e realmente chego ao ponto de imaginar que Deus é um patife. Devemos ficar na Palavra, no qual Deus se revela a nós e a salvação é oferecida, se acreditarmos nEle. Mas no pensamento sobre a predestinação, esquecemos Deus e, em seguida, o laudate (louvor) pára e o blasphemate (blasfêmia) começa. No entanto, em Cristo estão escondidos todos os tesouros (Colossenses 2.3); fora dEle, todos estão trancados. Portanto, devemos simplesmente nos recusar a discutir sobre eleição” (PLASS, Ewald, “What Luther Says”, volume I, p. 456).

Lutero ainda acrescentaria, em suas Palestras em Gênesis, que ele não queria saber – e queria que seus alunos não se importassem – “nem um pouco sobre esse assunto”.

5) Como Agostinho, e diferentemente de Calvino (ver meu segundo artigo desta série), Lutero cria que um crente genuíno pode cair da graça e se perder eternamente, e que os crentes que não caíam da graça eram os eleitos. Ou seja, para Lutero, assim como para Agostinho, nem todo mundo que nasceu de novo está entre os eleitos de Deus. Logo, é possível que as pessoas regeneradas apostatem da fé. Era a forma que Lutero encontrou, tudo indica que copiada de Agostinho (como agostiniano de origem que era), para evitar o antinomianismo e não “brigar” com os textos bíblicos que ensinavam a possibilidade concreta de um crente genuíno, regenerado, cair da graça.

Em relação ao que crêem hoje os luteranos oficialmente, a única diferença em relação ao pensamento de Lutero é que alguns luteranos defendem que a eleição é condicional, enquanto outros que é incondicional; e que uns crêem em predestinação com base na presciência, enquanto outros crêem nela sem base na presciência, mas sem negar o livre-arbítrio e a possibilidade de um crente genuíno, regenerado, cair da graça.

Enfim, o luteranismo, na questão da mecânica da Salvação, não é nem calvinista nem arminiano, porém não há como negar que, diferentemente do que os calvinistas popularizam por aí, ele é mais próximo do espírito do arminianismo clássico do que do espírito do calvinismo no que diz respeito ao entendimento sobre a mecânica da Salvação. Por quê? Porque nega a expiação limitada, nega a predestinação dupla, nega que um crente genuíno não pode cair da graça e nega que a graça manifestada sobre aquele que se torna cristão é menos eficaz do que aquela que é resistida por aquele que perece.

Luteranismo não é calvinismo. Luteranismo também não é arminianismo. Luteranismo é outra via, como os irmãos luteranos sempre enfatizam quando o assunto é a mecânica da Salvação. Porém, não há como negar que as dessemelhanças são maiores entre calvinistas e luteranos do que entre arminianos clássicos e luteranos nessas questões, embora a lenda diga o contrário. E uma coisa é a lenda, outra são os fatos.

No próximo artigo, tratarei do Sínodo de Dort e de outras objeções levantadas pelo irmão Franklin.

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P.S: O irmão Franklin cobrou recentemente fontes para minha declaração sobre as inconsistências de Bradwardine, que fiz no meu primeiro artigo desta série. Vamos lá: Russel J. Dykstra, na terceira e última parte de sua série de artigos intitulada Thomas Bradwardine: Forgotten Medieval Augustinian, publicada no periódico Protestant Reformed Theological Journal, edição de novembro de 2001, volume 35, número 1, uma publicação das Igrejas Reformadas Protestantes na América (PRCA) (veja AQUI); e o historiador e teólogo holandês Heiko Augustinus Oberman (1930-2001), em sua obra Archbishop Bradwardine: A Fourtheenth Century Augustinian - A Study of His Theology in its Historical Context, publicação da Medieval Academy of America e da Oxford Press, 1959 (pode ser acessada AQUI).

Diz Dykstra que Bradwardine tinha, por exemplo, "uma incapacidade de reconhecer as graves consequências do pecado original". Ele "não tinha uma visão do pecado como uma dívida profunda e um afastamento de Deus". Oberman diz que "Bradwardine enfatizava muito pouco a gravidade do pecado".

Dykstra afirma também que embora Bradwardine afirmasse que "o homem é justificado pela fé sem precedência de obras", isso não queria dizer que ele defendia o mesmo que os reformadores do século 16, porque ele afirmava também, como informa igualmente Oberman em sua referida obra (p. 182), citada por Dykstra, que "as boas obras são necessárias para a conclusão da justificação e da remissão", que "as obras são parte da satisfação pelo pecado". Ele dizia que havia "a remissão da culpa do pecado" e "a remoção do castigo do pecado", e que a primeira ocorria "através do arrependimento", e a segunda, "pelas obras" do crente. Em suma, Bradwardine "não foi capaz de eliminar todos os vestígios dos méritos de sua teologia, como Lutero e os reformadores fariam cerca de 200 anos mais tarde", frisa Dykstra.

Dykstra, ao final, lembra ainda que "Bradwardine defende a penitência e as obras de penitência como satisfação da pena temporal pelos pecados da Igreja", e que Bradwardine afirmava inclusive que "as punições temporais podem ser removidas do presente e do futuro pelas indulgências que são extraídas dos supérfluos bens das boas obras da Igreja".

Como conclui Dykstra, "os reformadores teriam de ir muito mais longe do que Bradwardine".


Silas Daniel Resposta Parte 5



Parte 5

Hoje, após o retorno de minhas férias, finalmente chegamos à reta final da minha série de observações às objeções do irmão Franklin Ferreira ao meu artigo Em Defesa do Arminianismo, publicado na revista Obreiro Aprovado número 68 (jan-mar/2015). O artigo final ficou muito extenso – mais do que qualquer outro da série já publicado aqui –, por isso o dividirei em três partes. Na terceira parte, falarei sobre o Sínodo de Dort, como prometido; e nesta primeira parte, quero, introdutoriamente,reafirmar e enfatizar três pontos sobre o meu último artigo desta série (relembre-o AQUI) devido a algumas réplicas que recebi por email de leitores nas minhas férias, os quais são aparentemente simpatizantes do calvinismo.

[P.S.: Somente hoje, 17 de julho de 2015, um dia após publicar este artigo, soube do texto do Rev. Daniel Branco, da Congregação Luterana da Reforma no Brasil, fazendo algumas objeções ao meu quarto texto (leia-o AQUI). Como estava de férias, passei as últimas semanas "mergulhado", por isso só soube agora do texto do Rev. Branco pelos leitores, quando comecei a liberar hoje de manhã os comentários que haviam sido enviados há semanas aqui para a minha coluna. Agradeço ao Rev. Daniel Branco pela sua contribuição ao debate. Quanto às objeções, creio que o que escrevi aqui, neste texto publicado ontem, mesmo sem ter lido antes o texto do irmão, vem de encontro às suas objeções. E que bom saber que aquilo que começou como um texto direcionado para o público assembleiano está repercutindo com muito interesse entre teólogos e pastores batistas, presbiterianos, luteranos etc. Vejo isso de forma muito positiva. Parece que, afinal, os irmãos reformados, luteranos e batistas estão passando a ler com interesse os artigos teológicos de autores assembleianos].

Em primeiro lugar, eu não afirmei que Lutero tornou-se sinergista. Não há uma linha no meu último artigo afirmando tal coisa, e nem no meu artigo de Obreiro Aprovado. O que eu asseverei no último artigo, com todas as letras possíveis, é que Lutero, no final de sua vida, foi claramente condescendente com o sinergismo de Melanchthon, não apenas não o condenando, mas chegando até mesmo a repreender a todos quantos o atacavam pelo seu sinergismo, de maneira que Melanchthon não pode ser considerado um “traidor” de Lutero. Isso é um fato.

Se Lutero foi firme contra Melanchthon quando o assunto era a divergência entre eles sobre a presença de Cristo na Ceia, no que diz respeito ao sinergismo de Melanchthon, ele, ao contrário, foi claramente condescendente, tolerante.

John M. Drickhamer, Th. D. pelo Seminário Concórdia em Saint Louis e pastor da Igreja Luterana Emanuel em Georgetown, Ontario, Canadá, em um texto em que assevera e lamenta o sinergismo de Melanchthon, é um dentre tantos que reconhece o que afirmei, inclusive lamentando que Lutero não tenha repreendido Melanchthon em seu sinergismo (grifos e colchetes são meus): “A terceira geração dos Loci Communes de Melanchthon pode ser datada de 1544, embora não houvesse muitas mudanças nela como na produção de sua segunda geração [a edição de 1535]. Lutero teve a oportunidade de examinar as primeiras edições dela [da produção de 1544] e não falou nada contra” (DRICKHAMER, J. M., “Did Melanchthon Become a Synergist?”, in revista “The Springfielder”, publicação do Seminário Teológico Concórdia, abril de 1976, volume 40, número 2, p. 99).

Lembrando que, na edição dos Loci Communes de 1544, assim como na edição de 1535, Melanchthon afirmava as chamadas “três causas que concorrem para a Salvação”: a Palavra de Deus, o Espírito Santo e o assentimento da vontade humana.

O professor luterano Ricardo Willy Rieth também enfatiza essa condescendência do monergista Lutero com o sinergismo de Melanchthon (os grifos e colchetes são meus): “Na controvérsia entre Lutero e Erasmo sobre o livre-arbítrio [1525], Melanchthon buscou um caminho intermediário, expresso na [sua obra] ‘Carta aos Colossenses’ de 1527. A edição alemã desse comentário, de 1529, foi prefaciada por Lutero, que encheu de elogios a interpretação de Melanchthon. A partir do artigo XVIII da Confissão de Augsburgo, a compreensão de Melanchthon sobre o livre-arbítrio alcançou ‘status’ confessional. Os elogios de Lutero aos Loci [Communes]’ persistiram, mesmo após a nova edição de 1535, onde Melanchthon trazia a mesma compreensão sobre o livre-arbítrio. Lutero elogiava tanto a forma quanto o conteúdo da exposição (‘rest et verba’). [...] Quando aquele [Melanchthon] era denunciado por supostas diferenças de ensino em relação a Lutero, este sempre saía em sua defesa. O mesmo ocorreu em 1527, quando da controvérsia antinomianista (João Agrícola) e em 1536/1537, quando Conrado Cordatus, Nicolau Amsdorff e Jacó Schenck acusaram Melanchthon de defender um tipo de sinergismo” (RIETH, Ricardo Willy, O pensamento teológico de Filipe Melanchthon (1497-1560), artigo da revista Estudos Teológicos, volume 37, número 3, 1997, São Leopoldo, Escola Superior de Teologia da IECLB, p. 225).

Em segundo lugar, eu também não disse que a suavização do entendimento original de Lutero sobre o livre-arbítrio no final de sua vida, assumida em sua nota publicada postumamente para a edição de 1546 de sua obra De servo arbitrio, significava sinergismo. Também não há uma linha em meu último artigo afirmando tal coisa. O que disse – e repito aqui enfaticamente, posto ser um fato historicamente importantíssimo, mas lamentavelmente omitido, especialmente por teólogos calvinistas – é que Lutero, na referida nota de 1546, ao negar a compulsão divina, claramente se afastou daquela sua posição original mais radical quanto ao tema – posição esta, infelizmente, esposada por Calvino. Naquela nota, Lutero alinhava-se clara e definitivamente à posição mais branda de Agostinho sobre o livre-arbítrio (Acerca das diferenças entre Agostinho e Calvino sobre essa questão, veja – ou reveja – AQUI meu segundo artigo desta série).

Como disse em meu último artigo e repito aqui, Lutero terminou “vendo o livre-arbítrio mais como Agostinho o via do que como Calvino o via”. Aliás, ressaltei, inclusive, que tal mudança tinha seu gérmen já no texto original de De servo arbitrio, pois já havia no texto original um pequeno trecho em que Lutero suavizava o que ele afirmava de forma extremada em todo o restante do seu livro em relação ao livre-arbítrio.

Enfim, se eu acreditasse que Lutero teria se tornado um sinergista, eu o teria afirmado com todas as letras: “Tornou-se um sinergista”. Inclusive, o teria colocado, obviamente, no meu artigo de Obreiro Aprovado, mas o que disse tanto ali como aqui foi que Lutero havia negado, ao final da vida, três dos cinco pontos do que seria chamado posteriormente de “Tulip” calvinista; e no meu último artigo aqui, apenas acrescentei que Lutero também terminou alinhando sua visão do livre-arbítrio à de Agostinho, visão esta que – friso – é mais branda do que a de Calvino. Somente quanto a Melanchthon é que escrevi: “Era praticamente sinergista”. Aliás, em meu artigo de Obreiro Aprovado, eu já dissera também que Melanchthon se tornara, “na prática, um ‘arminiano’ antes de Armínio”.

Em suma, no que diz respeito à relação entre Melanchthon e Lutero, o meu ponto, que não pode ser negado, é que Lutero, no final da sua vida, além de ter mudado (assim como Melanchthon) a sua posição em relação àqueles pontos de que falei relativos à mecânica da Salvação, foi ainda tolerante com seu amigo e sucessor quando este começou a ir ainda mais além do que ele nesse assunto. Lutero, mesmo tendo permanecido monergista até o fim, não desaprovou a mudança de Melanchthon. Ele não o repreendeu por isso. Por alguma razão, ele, mais do que fazer “vista grossa”, chegou até mesmo a defendê-lo dos ataques a seu sinergismo. E, por favor, não venham me sugerir que Lutero era “burro” ou sofria de alguma espécie de “dislexia” para não entender o que Melanchthon escreveu claramente no Loci Communes de 1535, repetido em 1544 e – frise-se – lido mais de uma vez, com todo interesse, por Lutero.

Portanto, Melanchthon não pode ser chamado de “traidor” de Lutero. Ao contrário, vemos, inclusive, que ele foi fiel ao espírito das mudanças que o Lutero velho começou a empreender em relação ao entendimento bíblico da mecânica da Salvação. A única diferença é que ele deu um passo a mais que Lutero nessas mudanças; e até mesmo quando o deu, sempre insistiu e asseverou que suas mudanças estavam dentro do espírito do pensamento de Lutero ao final da vida. Citei, no meu último artigo – vocês devem se lembrar –, uma passagem da pena de Melanchthon, reproduzida pelo historiador Kaspar Brandt, em que ele assevera isso. Nessa defesa, escrita originalmente em latim, Melanchton declara que Lutero aceitara, sem proferir qualquer condenação, seus ensinos das “três causas concorrentes” e da predestinação; e que estes seus ensinos, sustenta ele, não estavam fora do espírito da teologia do Lutero velho.

Em terceiro lugar, volto também a frisar o que escrevi no meu último artigo: não é verdade que a visão sinergista de Melanchthon sofreu uma grande derrota após a sua morte. Os filipistas foram derrotados mesmo, completamente, apenas na controvérsia sobre a presença real de Cristo na Ceia, na qual a posição deles era a mesma dos luteranos criptocalvinistas. Já na Controvérsia Sinergista, foi outra história: quem venceu, ao final, foi a posição centrista, capitaneada, principalmente, por Jakob Andreae (1528-1590), David Chytraeus (1530-1560) e Nikolaus Selnecker (1530-1592), todos liderados por Martin Chemnitz (1522-1586) e todos os quatro discípulos e protegidos de Melanchthon. O radicalismo dos monergistas Nikolaus von Amsdorff (1483-1565) e Matthias Flacius (1520-1575), líderes dos autointitulados “gnesioluteranos”, assim como o radicalismo do sinergista Victorinus Strigel (1524-1569), foram reprovados. Aliás, quando Flacius se levantou contra o sinergismo radical de Strigel, ele foi apoiado tanto pelos “gnesioluteranos” quanto pelos filipistas de Wittenberg; e Flacius e os amsdorfianos, por sua vez, tiveram, ao final, seu monergismo radical também rechaçado.

Após a “Declaração e Relatório Final Conjunto dos Teólogos das Universidades de Leipzig e Wittenberg” em 1571, onde foi decidido que “a apreciação e a recepção da Palavra de Deus e o início voluntário da obediência no coração surgem daquilo que Deus graciosamente começou a trabalhar em nós”, veio o ponto final dado à controvérsia com o trabalho dos centristas liderados por Martin Chemnitz, que basearia sua visão teológica tanto nos escritos de Lutero quanto nos de seu fiel mentor e protetor Melanchthon – e até mais nos deste do que nos daquele. O resultado final dessa controvérsia, sabemos, foi a Fórmula de Concórdia, que “rejeita os extremos de Strigel e Flacius, e ensina que o homem é puramente passivo em sua conversão, mas coopera com Deus após a conversão” (Enciclopédia Cristã do site das Igrejas Luteranas do Sínodo de Missouri, que defende a eleição incondicional – veja AQUI).

O célebre historiador cristão Philip Schaff reconhece que não houve nenhuma derrota completa sobre o sinergismo de Melanchthon na Fórmula de Concórdia. Diz ele (grifos e colchetes são meus): “O sistema luterano é um compromisso entre o agostinianismo e o semipelagianismo. O próprio Lutero estava totalmente de acordo com Agostinho na depravação total e na predestinação, e declarou a doutrina da escravidão da vontade humana paradoxalmente de forma ainda mais forte do que Agostinho e Calvino [Schaff se prende, claro, ao Lutero da primeira fase e ao seu texto original de “De servo arbítrio”; o Lutero posterior, repito, que ele olvida ou lhe passa despercebido, é mais próximo de Agostinho do que de Calvino]. Mas a Igreja Luterana seguiu Lutero apenas até metade do caminho. A Fórmula de Concórdia (1577) adotou a sua doutrina da depravação total nos termos mais fortes possíveis, mas negou a doutrina da reprovação; ela apresenta o homem natural como espiritualmente morto, como uma ‘pedra’ ou um ‘bloco’, e ensina uma eleição particular e incondicional, mas também ensina um chamado universal” (SCHAFF, Philip, History of the Christian Church, volume 7, 1955, Eerdmans, p. 105).

Os teólogos luteranos Gassmann, Larson e Oldenburg ressaltam que “na Fórmula de Concórdia, as posições extremadas dos gnesioluteranos foram rejeitadas” e que apenas “em alguns pontos individuais seu protesto contra os filipistas e criptocalvinistas [questão da presença de Cristo na Ceia] tiveram um efeito duradouro” (GASSMANN, Günther; LARSON, Duane H.; OLDENBURG, Mark W.; Historical Dictionary of Lutheranism, 2011, Scarecrow Press, p. 167).

O teólogo alemão Erwin Fahlbusch (1926-2007), que foi professor de Teologia Sistemática da Faculdade de Teologia Protestante da Universidade de Frankfurt (e que declara que “os gnesioluteranos N. Amsdorf e M. Flacius ensinavam a pura doutrina de Lutero [relativa à Salvação] tanto em sua forma como no seu conteúdo”), frisa (grifos e colchetes são meus): “A Fórmula de Concórdia repudia o sinergismo dos filipistas [quanto à conversão]. [Mas] Ela também não aceita a formulação de Flacius de que o pecado original é a natureza – ou a essência da natureza – do ser humano [ensino que foi combatido pelos filipistas]. Por outro lado, é através do e no trabalho da graça que a pessoa pode ser capaz do consentimento da vontade [o que, no fundo, no fundo, não era muito diferente do que Melanchthon ensinava, como veremos daqui a pouco]. A Fórmula de Concórdia, entretanto, segue largamente a posição de Melanchthon sobre predestinação, o que significa que o problema do sinergismo manteve-se basicamente não resolvido [no Luteranismo]” (FAHBUSCH, Erwin, The Encyclopedia of Christianity, volume 5, 2008, Eerdmans e Brill, p. 272).

Sobre o mesmo assunto, inclusive esclarecendo de forma resumida e precisa o posicionamento de Melanchthon sobre o trabalho da graça e o consentimento da vontade, escreve o teólogo luterano norte-americano James William Richard, D. D., professor de Homilética do Seminário Teológico Luterano da Pensilvânia, no final do século 19 (grifos e colchetes são meus):

“Este ensinamento de Melanchthon, que tem sido chamado de sinergia, tem sido objeto de muito litígio na igreja luterana. Algumas das suas declarações, consideradas isoladamente do tratamento completo das quais fazem parte, podem estar abertas a objeções, mas consideradas nas suas relações adequadas, seus ensinamentos são aceitos como estando de acordo com a colocação simples das Escrituras e com a experiência cristã comum. De acordo com Melanchthon, Deus chama, o Espírito opera através da Palavra e a vontade é ativada sob a influência da graça e da verdade divina. Em seguida, ela aceita ou rejeita a oferta da salvação. Ela não tem nenhuma atividade de automovimentação para as coisas espirituais. Por si só, ela não realiza nenhuma retidão espiritual; ela não contribui em nada para a justificação; ela não pode produzir fé. A fé ocorre quando o homem ouve a Palavra de Deus e quando Deus move-o e inclina-o a acreditar. Sem a Palavra, não há contato do Espírito. Assim, livre-arbítrio é simplesmente o poder de resistir à própria enfermidade da vontade e aceitar a oferta da graça de Deus apenas quando assistido pelos poderes superiores. Sua subordinação ao Espírito e à Palavra é sempre pressuposta”.

“Das três causas concorrentes, a vontade é colocada em terceiro lugar, e se torna uma causa apenas quando precedida e vivificada pela atividade das outras duas. Assim, Melanchthon está tanto muito longe do Pelagianismo de um lado quanto do determinismo do outro. Ele preserva o meio dourado. Contra a ênfase unilateral de Lutero no amor de Deus e a doutrina da graça irresistível de Calvino, Melanchthon mantém e conserva a responsabilidade humana. Assim, ele transmite uma qualidade ética à teologia luterana que, caso contrário, ela não teria tido [Vide o ensino, sobretudo, dos amsdorfianos]. A personalidade moral é instada e é feita responsável pelo uso dos meios da graça para apropriação da salvação e para uma vida justa”.

“É a conclusão dos juízes mais competentes que, neste ponto [isto é, o da “personalidade moral”], mesmo a Fórmula de Concórdia adere à tendência fundamental de Melanchthon [mesmo mantendo o monergismo na conversão], e os expositores posteriores da Fórmula de Concórdia, não obstante as suas calúnias a Melanchthon, simplesmente adotaram sua concepção do caminho da salvação a fim de salvar a sua própria ‘ordo salutis’ em seu ponto mais crítico de inconsistência e de absurdidade do puro acidente. Além disso, alguns dos luteranos mais capazes modernos – Thomasius, Sthal, Harless, Hofmann, Khanis e Luthardt – têm mais ou menos seguido o rumo tomado por Melanchthon, e desenvolveram a doutrina luterana da vontade e da predestinação longe da posição tomada por Lutero em De servo arbitrio, e nunca renunciaram. Na verdade, a proposição de que Deus ama e elege o homem em Cristo, e não por um ‘absolute beneplacitum’, tornou-se clássica na igreja luterana” (RICHARD, James William, Philip Melanchthon, the Protestant preceptor of Germany (1497-1560), 1898, G. P. Putnam’s Sons, New York and London, pp. 236 a 238).

Deste mesmo autor, recomendo a leitura da obra The Confessional History of the Lutheran Church, originalmente publicada em 1909 e muito rica em informações históricas, trazendo também detalhes de documentos primários dos debates de ambos os lados das controvérsias luteranas.

Em suma, a teologia luterana acomodou as visões monergista e sinergista. Não houve derrota total de um e vitória completa do outro. Não houve reprovação geral à visão sinergista de Melanchthon. Os luteranos, no final do século 16, estabeleceram um meio-termo, onde, em primeiro lugar, mantiveram-se monergistas na conversão, mas entendendo a natureza humana de forma menos radical do que a que propugnavam os luteranos calvinistas seguidores de Matthias Flacius; em segundo lugar, reconheceram que o homem coopera com Deus após a conversão, como defendiam os filipistas e diferentemente do que entendiam os luteranos calvinistas amsdorfianos; e, em terceiro lugar, como enfatizei, seguiram todas as demais mudanças que Melanchthon, juntamente com Lutero, empreendeu quanto ao entendimento da mecânica da Salvação ao final de sua vida (negação da predestinação dupla, expiação ilimitada, graça universal e possibilidade de um cristão genuíno cair da graça).

Essa foi também a linha seguida por toda a “Ortodoxia Luterana” que se seguiu após essa controvérsia do século 16. Inclusive, ainda no século 17, os respeitados luteranos ortodoxos Johann Quensteldt e David Hollaz chegariam até mesmo a defender a predestinação com base na presciência, e hoje já há até luteranos que deram um passo mais adiante, defendendo a eleição condicional, de maneira que, como frisei no meu último artigo, e afirma o teólogo luterano Douglas A. Sweeney, “os luteranos se inclinaram mais para os arminianos do que para os calvinistas sobre algumas das questões doutrinárias que dividiam os dois grupos”. Trocando em miúdos, no final das contas, a visão de Melanchthon acabou sendo mais preponderante na teologia luterana do que a de seus adversários.

Por todas essas razões, o professor reformado norte-americano Herman Hanko admite com lamento: “O Luteranismo, apesar de Lutero, tornou-se essencialmente sinérgico. Embora o próprio Lutero não era, em nenhum sentido da palavra, um sinergista, Philip Melanchthon, seu amigo e colega de trabalho, o era. Sob a influência de Melanchthon, o sinergismo foi oficialmente incorporado nos padrões confessionais das Igrejas Luteranas e continua até o presente como uma parte integrante da teologia luterana” (HANKO, Herman, The Relation Between the Lutheran and Calvin Reformation, in site hopeprc.org, seção "Pamphlets”). (Atenção: Hanko não diz que a teologia luterana se tornou completamente sinérgica, mas “essencialmente sinérgica”, posto que o sinergismo tornou-se, de fato, uma considerável parte integrante dela).

Dito isto, vamos às minhas demais observações sobre as objeções do irmão Franklin.

7) O irmão Franklin, em uma tréplica recente, manifesta desconforto por eu usar insistentemente a expressão “mecânica da Salvação” e sugere que talvez isso, que o incomoda, seja influência católica ou eventualmente de uma teologia popular influenciada por Finney. Diz ele: “Me causa desconforto o uso recorrente da expressão ‘mecânica da salvação’, o que, me parece, remete o debate à posição católica popular (como conectada ao recebimento mecânico da graça pelos sacramentos, numa distorção daquilo que o catolicismo denomina de ex opere operato) ou evangélica popular (como relacionada à ‘aceitação’ de Cristo diante do apelo, que assegura aquele que ‘se decidiu’ a salvação, conforme sistema popularizado pelo pelagiano Charles Finney), o que empobrece a linguagem do debate”.

Não tomei essa expressão de nenhum teólogo católico, nem de pelagianos ou semipelagianos. Aliás, não sei porque essa constante suspeita dos irmãos calvinistas de que tudo que diga respeito ao pensamento arminiano seria uma importação do pensamento católico. Esse é um preconceito, além de tremendamente equivocado, extremamente datado. Mas, prefiro acreditar que o irmão tenha pensado isso sobre mim apenas porque, em resposta a algumas objeções do irmão, tive que escrever alguns parágrafos sobre detalhes da teologia de Agostinho, Aquino e Cassiano nos quais eventualmente citei uma ou outra obra católica.

A ironia e a graça dessa história é que tomei esse termo emprestado exatamente do calvinista Martin Lloyd-Jones, mais precisamente de uma palestra dele transformada em livro (como tantas outras) na qual ele usou essa expressão para explicar e enfatizar que conquanto ele, como calvinista, não considerasse o arminianismo uma visão correta, ele reconhecia que a diferença entre arminianos e calvinistas no que concerne à Doutrina da Salvação não se tratava de nada grave. Essa palestra dele, proferida em uma conferência realizada na Áustria em 1971 pela Associação Internacional de Estudantes Evangélicos (IFES, na sigla em inglês), encontra-se publicada, no Brasil, nas obras Que é um evangélico? e Discernindo os Tempos, ambas lançadas há muitos anos pela editora PES.

Na referida palestra, Lloyd-Jones afirmava, com acerto, que toda a diferença entre calvinistas e arminianos dizia respeito ao “mecanismo da Salvação”, e não ao “método [caminho] da Salvação”. Quando li isso pela primeira vez há mais de dez anos, achei os termos usados pelo irmão Lloyd-Jones didaticamente perfeitos para explicar às pessoas a essência das divergências entre calvinistas e arminianos. Desde então, tenho usado essa expressão constantemente, e propositadamente repito-a de forma sistemática em meus artigos, para deixar sedimentado, na mente das pessoas que me lêem, no que consiste exatamente essa diferença. Se essa insistência incomoda o irmão, lamento, mas continuarei a cometê-la, por crer que tal prática resultará em um melhor entendimento sobre o assunto por parte de um maior número de pessoas.

Por fim, se o irmão Franklin tivesse lido com mais atenção meu artigo na revista Obreiro Aprovado, não teria essa suspeita, pois cito, na penúltima página dele, o uso que Lloyd-Jones fazia desse termo.

8) E por falar de nomenclatura, na mesma tréplica, o irmão Franklin não aceita que eu divirja, juntamente com uma gama enorme de outros historiadores, quanto à oposição ao uso da nomenclatura “semiagostinianismo” para se referir aos chamados “semipelagianos”, dizendo que é importante ter definições bem claras dos termos, e que isso significaria seguir sempre a definição mais usual. Entretanto, quando corrijo o irmão Franklin, afirmando, conforme a definição usual de Idade Média, que Próspero de Aquitânia não era medieval, o irmão já prefere relativizar a importância das definições usuais, dizendo que Agostinho e Próspero, de certa forma, por estarem situados ao final da Antiguidade, podem excepcionalmente ser considerados também medievais, apesar de usualmente não serem considerados assim, e que como alguns historiadores chegam a tratar Agostinho, em certo sentido (“intelectualmente”), como medieval, então, por tabela, podemos fazer o mesmo com Próspero. Ou seja, em um momento, o irmão sugere a imprescindibilidade das definições usuais; mas, logo em seguida, contraditoriamente, faz pouco caso delas. Um mesmo peso, duas medidas diferentes.

Diz o irmão Franklin: “Palavras têm significado. Portanto, há que se fazer uma diferença entre semipelagianismo e semiagostinianismo: o primeiro ensina que a graça de Deus e a vontade do homem trabalham juntas na salvação, e o homem deve tomar a iniciativa; a fé e o arrependimento são obras humanas, sendo consideradas pré-requisitos para se receber o Espírito. O segundo ensina que a graça de Deus se estende a todos, capacitando uma pessoa a escolher e a fazer o necessário para a salvação; a fé e o arrependimento são dons do Espírito. Esta diferença não pode ser subestimada. Ainda que o termo ‘semipelagianismo’ tenha sido cunhado pelos luteranos no século XVI, e usado na Epítome da Fórmula de Concórdia, para, retrospectivamente, rotular a teologia associada à João Cassiano (conhecida como massilianismo, mas que também tem sido chamada pelos católicos de semipelagiana)”.

E ainda: “Usando a data da queda do Império Romano do Ocidente, que a historiografia tradicional emprega para marcar o fim da Antiguidade clássica, o autor rejeita Próspero de Aquitânia como um escritor medieval, desconsiderando o fato de que, intelectualmente, pode-se citar as origens do pensamento medieval cristão em Agostinho de Hipona, o ‘mestre do ocidente’ (Philotheus Boehner e Etienne Gilson, História da filosofia cristã) – por exemplo, Jacques LeGoff situa Agostinho num primeiro período do medievo, que “balança da Antiguidade Tardia e a alta Idade Média” (cf. Homens e mulheres da Idade Média; cf. também A. S. McGrade (org.), Filosofia medieval; Josep-Ignasi Saranyana, La filosofía medieval: desde sus orígenes patrísticos hasta la escolástica barroca; Etienne Gilson, A filosofia na Idade Média; D. W. Hamlyn, História da filosofia ocidental, etc.). Ao tratar da rejeição da heresia pelagiana no Sínodo de Cartago, em 418, M. Pohlenz afirmou: ‘O fato de a Igreja ter-se pronunciado por tal doutrina [da necessidade da graça] assinalou o fim da ética pagã e de toda a filosofia helênica – e assim começou a Idade Média’ (cf. Giovanni Reale & Dario Antiseri, História da filosofia. v. 2)”.

Para mim, é questão resolvida há muito tempo que (1) as definições usuais nem sempre são precisas, pois há casos em que são corretas e outros em que não o são; e também que, (2) nos casos claros de imprecisão dos termos usuais, deve-se ou evitar o uso do termo impreciso ou eventualmente até mesmo conceder usar o referido termo devido à sua popularidade, mas fazendo sempre ressalvas claras quanto a seu uso. Este foi o caminho tomado no meu artigo em “Obreiro Aprovado”: deixei claro que, por questões práticas, usaria o termo mais usual, o mais popular, para se referir aos cassianistas (no caso, “semipelagianos”, mais popular do que o termo igualmente válido “massilianistas”), mas frisando que, por questões de justiça, a melhor nomenclatura para se referir aos cassianistas deveria ser “semiagostinianos”.

Mesmo eu preferindo o termo usual (“semipelagianismo”), o irmão achou um erro eu ter dito que Cassiano e seus seguidores também poderiam ser chamados de “semiagostinianos”. Ora, uma vez que eu estou ciente das evidências em contrário de muitos historiadores em relação ao termo “semipelagianismo” para se referir aos cassianistas, não posso ignorá-las apenas para adequar os termos às definições preferidas por um determinado sistema do gosto do irmão. Entendo que o uso do termo “semiagostinianos” para se referir aos cassianistas possa incomodar calvinistas como R. C. Sproul, que, por conveniências óbvias, prefere se opôr a esse uso, mas eu não posso fugir dos fatos. Aliás, Sproul, que insiste em trabalhar seu entendimento de tudo apenas sobre dois eixos – Agostinianismo e Pelagianismo ou Monergismo e Sinergismo – até pouco tempo (não sei se ainda continua) era tão “preciso” nesse seu sistema de definições que sustentava o absurdo de que Arminianismo nada mais é do que Semipelagianismo.

Ademais, como afirma o teólogo luterano norte-americano James William Richard, a verdade é que até mesmo o termo “sinergismo” é impreciso. Ressalta Richard que “sinergista, sinergia e sinergístico são termos de reprovação inventados [no século 16] por [Matthias] Flacius e seus seguidores”, os quais “não são justos para descrever o outro lado da controvérsia [os filipistas]”, porque “os filipistas repudiavam as coisas essenciais que os flacianos afirmavam sobre eles ao utilizarem essas palavras, ou seja, que, na conversão, a vontade é ‘causa eficiente’ e que por seu próprio poder nativo ela pode concordar com a promessa e cooperar com a graça divina” (RICHARD, J. W., Confessional History of Lutheran Church, 1909, Lutheran Publication Society Philadelphia, p. 351). Nenhum filipista e nenhum arminiano defenderam tal coisa. Mas é isso que sugere o termo “sinergista”, cunhado no calor das paixões de um debate teológico e com o anseio de impingir à força a pecha de que haveria alguma proximidade dos filipistas com o pelagianismo. Seria correta, portanto, a aceitação passiva desse termo para se referir à posição filipista ou à arminiana? Qualquer nível de entendimento de um consentimento da vontade no processo de conversão, por mínimo que seja – sem ser “initium fidei” e subordinada à ação da Palavra e do Espírito –, se encontra abrigado perfeitamente no termo “sinergismo”, que sugere uma participação intensa e equivalente entre duas ações ou vontades? Não seria muito melhor um outro termo para classificar isso?

Enquanto não se convenciona termos mais precisos, a gente vai tocando a vida com as nomenclaturas usuais inventadas no século 16 e que, não poucas vezes, mais confundem do que explicam. Eu as uso também, mas consciente de que elas são imperfeitas e eventualmente fazendo ressalvas ao usá-las. O problema é que, infelizmente, alguns irmãos já têm, nessas questões específicas relativas à mecânica da Salvação, um sistema pré-definido, rígido e tendenciosamente genérico, como é o caso do irmão Sproul, onde tudo deve ser entendido sempre atendendo inexoravelmente a um esquema pré-estabelecido: tudo tem que se encaixar perfeitamente no esquema dos dois eixos, com as gradações sendo tão “claras” e “precisas” que Sproul chama Arminianismo de Semipelagianismo...

Nem mesmo Agostinho tratou os cassianistas como semipelagianos, mas como se fossem quase agostinianos. Foi Próspero de Aquitânia, logo após a morte de Agostinho, que tratou os cassianistas como hereges e, mesmo assim, Próspero teve que voltar atrás rapidamente em muitos dos seus posicionamentos após o debate com eles nos primeiros anos após a morte de Agostinho. Além do mais, o Sínodo de Orange (529) não condenou o cassianismo como um todo, mas apenas um único e pequeno aspecto dele, e ainda condenou a dupla predestinação agostiniana.

Mas, alguém pode perguntar: “Então, como chamaremos o resultado do Sínodo de Orange, se os semipelagianos eram, na verdade, semiagostinianos?”. O resultado desse Sínodo não é nem cassianista, nem agostiniano. À risca, é uma terceira coisa, porque condenou a ideia de um eventual “initium fidei” por parte do homem, mas não condenou a expiação ilimitada, a graça resistível, a predestinação com base na presciência e a possibilidade de um cristão genuíno cair da graça (todos pontos reprovados por Agostinho) defendidos igualmente pelos cassianistas e confirmados pelos Concílios de Arles e Lião em 476; e, repito, ainda condenou a predestinação dupla agostiniana. Essa terceira vertente derivada dos Sínodos de Arles, Lião e Orange seria chamada, séculos depois, de “Arminianismo”, mas, por questões práticas, prefiro chamar ou de “Agostinianismo moderado” ou até mesmo de “Semiagostinianismo” também, mas sempre fazendo a ressalva de que os próprios cassianistas podem ser classificados igualmente como semiagostinianos.

Essas nossas definições usuais são tão “precisas” que, não à toa, encontramos declarações como esta em algumas obras: “Essa posição oficial tomada pelo Sínodo de Orange em 529 pode ser chamada tanto de Semipelagianismo como de Semiagostinianismo, uma vez que ela tomou um meio-termo nessa disputa” (DITMANSON, Harold H., Grace in Experience and Theology, 1977, Augsburg Publication House, p. 53). E ainda: “Nos séculos subseqüentes, o ensino de Agostinho foi modificado para o que muito mais tarde, no século 16, começaria a ser chamado de Semipelagianismo, ou melhor, Semiagostinianismo, uma vez que as categorias de Agostinho permeiam essa abordagem” (HILLERBRAND, Hans J. [editor], Historical Dictionary of the Reformation and Counter-Reformation, 2000, Fitzroy Dearbon Publishers, verbete “Grace”).

Percebe como, na medida em que nos aprofundamos no conhecimento de cada uma dessas correntes, as classificações usuais se tornam cada vez mais imperfeitas? Algumas pessoas se perguntam: por que essas diferenças de nomenclatura entre os teólogos e historiadores? Porque a verdade é que embora o Cassianismo não seja Arminianismo, nem o Arminianismo seja Luteranismo e nem o Luteranismo seja Cassianismo, o Cassianismo é um tipo de Semiagostinianismo, assim como o que seria chamado posteriormente de Arminianismo também é um tipo de Semiagostinianismo, assim como o Luteranismo é igualmente outro tipo de Semiagostinianismo. Todos variando apenas no nível de gradação do seu Agostinianismo, mas mantendo sempre as bases mais importantes deste: a defesa do pecado original e a condenação veemente do Pelagianismo.

Sobre o Cassianismo ser Semiagostinianismo, seguem abaixo alguns depoimentos, dentre tantos que eu poderia listar aqui, de teólogos e/ou historiadores (além dos que citei no primeiro artigo) que corroboram o que eu digo (os eventuais grifos e colchetes são meus):

“Semipelagianismo – Doutrina, sustentada durante o período de 427 a 529, que rejeita as visões extremas tanto de Pelágio quanto de Agostinho no que diz respeito à prioridade da graça divina e da vontade humana no trabalho inicial da salvação. O termo ‘Semipelagianismo’, no entanto, é uma expressão relativamente moderna, a qual aparentemente apareceu pela primeira vez na luterana Fórmula de Concórdia (1577) e veio a ser associada à teologia do jesuíta Luís Molina (1535-1600). O termo, não obstante, foi uma escolha infeliz, porque os chamados semipelagianos queriam ser qualquer coisa, menos meio-pelagianos. Seria mais correto chamá-los de semiagostinianos, pois conquanto rejeitassem as doutrinas de Pelágio e respeitassem Agostinho, não desejavam seguir às últimas consequências sua teologia” (ELWELL, Walter A., Evangelical Dictionary of Theology, p. 1089).

“‘Semipelagianismo’ é muito mais difícil de definir. O termo não foi cunhado até o final do século 16, na luterana Fórmula de Concórdia de 1577. Ela foi adotada por alguns teólogos católicos também, particularmente pelos dominicanos [tomistas], que usaram o termo para descer a lenha em seus adversários jesuítas [molinistas]. Alguns têm sugerido que provavelmente o termo ‘Semiagostinianismo’ é o mais preciso, uma vez que não se defendeu um meio-termo com Pelágio, mas se apoiou a doutrina da graça e do pecado original de Agostinho” (CARTWRIGHT, Steven [editor], A Companion to St. Paul in the Middle Ages, 2013, Brill, pp. 86 e 87).

“Com isto, nós estamos no campo do que viria mais tarde a ser chamado de Semipelagianismo e que, mais recentemente, e provavelmente mais corretamente, tem sido referido como Semiagostinianismo” (RAMSEY, Boniface, John Cassian: The Conferences, 1997, Newman Press, p. 459).

“...foi mais tarde esposada por João Cassiano na décima-terceira de suas famosas 24 ‘Conferências’ e veio a ser chamada como Semipelagianismo ou, mais recentemente, e provavelmente mais corretamente, como Semiagostinianismo” (RAMSEY, Boniface, Saint Augustin – Selected Writings on Grace and Pelagianism, 2011, Augustinian Heritage Institute, p. 23).

“...a doutrina chamada de Semipelagianismo, embora deva ser mais propriamente chamada de Semiagostinianismo, uma vez que Cassiano separou-se nitidamente de Pelágio e classificou-o como herético, enquanto sentiu-se em completa harmonia com Agostinho...” (JACKSON, Samuel M.; The New Schaff-Herzog Encyclopedia of Religious Knowledge, volume 2, 1977, Baker Book House, p. 436).

“Note que o rótulo ‘Semipelagianismo’, com a sugestão de ‘meio-herético’, é impreciso quando aplicado a visões desse tipo. Muitas vezes, é ignorantemente aplicado ainda hoje como um termo de recriminação contra visões similares. ‘Semiagostinianismo seria ao menos mais exato e menos petição de princípio’ (BETHUNE-BAKER, ‘Early History of Christian Doctrine, p. 321)” (BETTENSON, Henry; MAUNDER, Chris, Documents of the Christian Church, quarta edição, 2011, Oxford University Press, p. 63 – Caros leitores, esta obra, bastante conhecida e a qual recomendo, existe em português).

“O termo ‘Semipelagianismo’ é anacrônico, inventado séculos mais tarde com base em certos conteúdos da controvérsia pelagiana, e não foi usado por Agostinho. Agostinho não considerava os monges de Hadrumetum, Provence e Marseille como ‘heréticos pelagianos’, mas como ‘irmãos em Cristo’ que tinham dúvidas sobre a natureza da graça de Deus e sobre as consequências da sua doutrina da graça. Essa fraternal troca de explanações nunca tomou a forma de uma controvérsia [entre Agostinho e os cassianistas]. Os monges explicitamente rejeitaram o pensamento de Pelágio. Além de ser anacronismo, por isso, o termo ‘Semipelagianismo’ é também incorreto” (DUPONT, Anthony, Gratia in Augustine’s Sermones ad Populum during the Pelagian Controversy, p. 64).

“O termo ‘Semipelagianismo’ é, de fato, um anacronismo. Aqueles a quem é aplicado o termo hoje estavam simplesmente tentando chegar a algum meio-termo diante da visão um tanto extremada de Agostinho sobre a predestinação e o papel do livre-arbítrio na salvação do homem” (NEIL, Bronwen, Leo the Great, Routledge, 2009, p. 34).

“...o que mais tarde veio a ser chamado de Semipelagianismo, que não é um termo de louvor, claro, dado que Pelágio foi um herético declarado; Semiagostinianismo teria sido o termo mais preciso...” (BERGER, Karol, Bach’s Cycle, Mozart’s Arrow: An Essay on the Origins of Musical Modernity, 2006, University of California Press, p. 136).

“Eles [os cassianistas], então, estabeleceram um meio-termo que veio a ser conhecido como Semipelagianismo, mas que poderia muito bem ter sido chamado de Semiagostinianismo” (STILWELL, Gary A., Where Was God: Evil, Theodicy, and Modern Science).

“Isto é usualmente chamado como ‘Semipelagianismo’. Entretanto, há alguns que preferem dar preferência – como faz R. Seeberg, por exemplo – ao nome ‘Semiagostinianismo’” (PALMER, Edwin Hartshorn, The Encyclopedia of Christianity, volume 2, 1968, National Foundation for Christian Education, p. 372).

“Esta visão, mais tarde chamada de Semipelagianismo ou, dependendo da perspectiva, Semiagostinianismo...” (HIGGINS, John R.; DUSING, Michael L.; TALLMAN, Frank D.; An Introduction to Theology: A Classical Pentecostal Perspective, 1993, Kendall/Hunt Pub., p. 71).

“Cassiano tem sido chamado de pai do Semipelagianismo, mas seria mais justo descrever o sistema que ele advogava como Semiagostinianismo” (WILLIAMS, Norman Powell, The Grace of God, 1930, Longmans, Green and Co., p. 46).

“Ele [João Cassiano] ganhou alguns seguidores. Sua modificada forma da doutrina de Pelágio é chamada de Semipelagianismo, mas alguns a chamam de Semiagostinianismo por ser uma posição entre as duas visões” (OGDEN, Russel, The Freedom Book: Choosing Your Future, 2011, WestBow Press, p. 138).

“É enganador usar o termo ‘Semipelagianismo’ para Casssiano, como se implicasse que ele simpatizasse com Pelágio e adotasse uma forma modificada de sua doutrina herética. Autores têm dito que seria mais justo chamar o erro de Cassiano de ‘Semiagostinianismo’. [...] [Citando outros autores:] ‘Semiagostinianismo seria uma designação mais precisa, que não implicaria nenhuma dúvida’. [...] ‘A controvérsia (...) tem sido comumente chamada, desde o século 16, como Semipelagianismo, embora Semiagostinianismo seria o termo mais verdadeiro para descrevê-la’” (MERTON, Thomas; O’CONNELL, Patrick F.; Cassian and the Fathers, 2005, Cistercian Publications, pp. 102 e 103).

“O Semiagostinianismo da escola de Vicente, Cassiano e Faustus foi estigmatizado com o rótulo um tanto áspero de Semipelagianismo” (ROBERTSON, Archibald, Regnum Dei: Eight Lectures on the Kingdom of God in History of Christian Thought, 2004, Wipf and Stock Publishers, p. 203).

“Semipelagianismo é um nome conveniente, mas enganoso” (CRISTIANI, L., Jean Cassien, La Spiritualité Du Désert, volume 2, 1946, S. Wandrille, p. 237).

“Aplicar o termo [Semipelagianismo] aos monges da África ou da Gália que tinham dificuldades com as visões de Agostinho é, ao mesmo tempo, anacronismo e injustiça” (TESKE, R. J., General Introduction in Answer to the Pelagians, volume 4 – To the Monks of Hadrumetum and Provence ["The Works of Saint Augustin", I/26], 1999, p. 11).

“O termo ‘Semipelagianismo’ (...) é inutilmente pejorativo e sugere uma ligação direta com Pelágio” (DANIÉLOU, J.; MARROU, H. I.; The Christian Centuries, volume 1 ["The First Six Hundred Years”], Londres, 1978).

“O nome [Semipelagianismo] é errado. Os líderes dessa escola não estavam a meio-caminho de se tornarem discípulos de Pelágio” (CHADWICK, O., John Cassian – A Study in Primitive Monasticism, 1968, Cambridge, p. 127).

Posso aumentar essa lista. Parei aqui para não ficar muito cansativo. E volto a perguntar: sabendo de tudo isso, como eu posso, conscientemente, aceitar inquestionável, passiva e silenciosamente um determinado uso recente e popular de uma determinada nomenclatura (“Semipelagianismo”), sem sequer fazer uma ressalva quanto a seu uso e sem mencionar a outra nomenclatura que parece ser a mais indicada (“Semiagostinianismo”), quando há evidências claras de que aquela nomenclatura (“Semipelagianismo”) é mesmo imprecisa e há inúmeros historiadores respeitados que reconhecem isso e preferem, por isso, esta outra nomenclatura (“Semiagostinianismo”)? Entretanto, apesar de tudo isso, ao fazer essa ressalva, ainda sou lamentavelmente classificado como alguém que distorce os significados ou os fatos históricos. E olha que, mesmo após a ressalva, insisti no termo usual “Semipelagianismo” para não causar confusão!

Como se não bastasse, ainda há outro detalhe importantíssimo que foi esquecido nessa questão toda: embora a discussão sobre termos tenha, sem dúvida, a sua importância, nossa preocupação principal deve ser sempre em relação ao sentido em que os termos são empregados. Ou seja: as palavras têm significados, mas mais importante do que as palavras são os significados.

As palavras empregadas correspondem realmente aos seus significados? E ainda: apesar das divergências de nomenclaturas, têm-se, pelo menos, alguma concordância sobre os significados representados por essas nomenclaturas?

É comum historiadores preferirem um termo X para se referir a um fato A, enquanto outros preferem o termo Y para se referir à mesma coisa, e pode-se debater intensamente sobre qual o termo mais indicado a ser usado, mas o que é mais importante do que definir qual o termo que melhor se aplica a uma coisa é saber, antes de tudo, se ambos os lados, pelo menos, têm a mesma compreensão da coisa em si a qual se referem por termos diferentes. Ambos estão de acordo com o conteúdo e suas características? A divergência recai apenas no rótulo utilizado para descrevê-la ou a divergência vai além do rótulo diferente? Isso evita “ruídos de comunicação”, isto é, desentendimentos mais do que desnecessários.

O que quero dizer com isso? Permita-me ser direto: o irmão acabou, desnecessariamente, se prendendo a uma questão de somenos importância e, ainda mais, assumindo intransigentemente um lado que, à luz de inúmeros especialistas, pode-se afirmar que não é o mais feliz. O irmão, claro, pode achar o contrário sobre sua posição, que tem seus seguidores; mas, a verdade é que, à luz de todas essas informações, conquanto respeitando sua posição, não posso concordar com ela de forma alguma devido às claras deficiências que ela apresenta.

E por falar do sentido por trás das palavras, vejamos agora o caso de Próspero de Aquitânia.

Será que quando Boehner e Gilson, ao mencionarem corretamente, como o irmão menciona, que as origens do pensamento medieval estão em Agostinho, estão querendo dizer com isso que Agostinho já estava na Idade Média ou apenas que o pensamento que acabaria preponderando na Idade Média teve sua origem no final da Antiguidade com Agostinho? Será que quando o medievalista Jacques LeGoff declara que Agostinho “balança da Antiguidade Tardia à alta Idade Média”, ele está dizendo que o bispo de Hipona é Idade Média ou apenas que, mesmo sendo cronologicamente Antiguidade, Agostinho, por viver no fim da Antiguidade e por seu pensamento ter marcado o início da Idade Média, estava quase (“balança”) na Idade Média? Quando Pohlenz fala sobre a rejeição da heresia pelagiana no Sínodo de Cartago, em 418, ele está declarando que a Idade Média começou mesmo, de fato, em 418, com a decisão desse Sínodo, ou apenas que a decisão desse Sínodo assinala o fim da ética pagã e de toda a filosofia helênica, que é algo que caracterizou a Idade Média em seu início?

Veja: não é que eu discorde que “intelectualmente” não possamos situar o pensamento de Agostinho e de Próspero como “medievais” (Aliás, ao contrário, concordo com isso plenamente!), mas, sim, que a questão é que Agostinho e Próspero não estão situados cronologicamente na Idade Média. Esse era o ponto, mas o irmão acabou desvirtuando esse aspecto da minha crítica à menção de Próspero (que é uma crítica que vai, aliás, muito mais além do que esse aspecto). Ao se falar de Idade Média, é óbvio que eu não estava falando de uma definição elástica que incluiria a identificação intelectual de pensamentos do fim da Antiguidade, ou mesmo do início da Modernidade, com uma mentalidade preponderante na Idade Média, mas, sim, ao recorte histórico mesmo, temporal: quem, no período da Idade Média, defendeu essencialmente o que Agostinho defendeu em relação à mecânica da Salvação.

A data majoritária, praticamente consensual, do início da Idade Média no ano 476 é, dentre as alternativas levadas a sério, a segunda mais próxima que encontramos de Agostinho e Próspero entre todos os historiadores. As outras estabelecem esse início nos anos 455 (ano considerado pela maioria dos especialistas como o mais provável para a morte de Próspero), 487, 500 (a segunda alternativa mais aceita pelos especialistas para o início da Idade Média), 550 e 750. “750?” Sim, porque há quem classifique os anos de 400 a 750 como “Antiguidade Tardia” (sic). Mais cedo que o ano 476, só há o posicionamento menos aceito por todos os especialistas, que inicia a Idade Média no ano 300(!).

Em segundo lugar, a questão aqui é um pouco mais ampla do que a mera discussão sobre precisão e imprecisão de termos ou de definições de fases cronológicas, porque, independente de considerarmos Próspero ou não um homem da Idade Média, independente de qual definição usarmos para Idade Média (as temporais ou mesmo a intelectual), ainda há o fato de que Próspero era contemporâneo de Agostinho e discípulo direto deste durante seu ministério, tendo defendido o mesmo que seu mestre por influência direta deste enquanto este estava vivo. Logo, uma vez que, ao referir-me à Idade Média, eu estava aludindo claramente a todos que vieram após Agostinho (e foi assim, inclusive, que o irmão, ao mencionar Próspero, entendeu originalmente o que eu disse), e Próspero foi contemporâneo e discípulo direto de Agostinho, logo Próspero já não se encaixaria como exemplo.

Foi só depois que fiz essa observação, lembrando, inclusive, que Próspero tecnicamente não era Idade Média, que o irmão, tentando justificar a menção a Próspero, procurou incluir o próprio Agostinho na Idade Média. Só que eu não me referi apenas à questão técnica se Próspero era ou não Idade Média. Esse foi apenas um dos pontos que levantei inicialmente. Independente deste, ainda ficam dois problemas: primeiro, se ele era contemporâneo de Agostinho e discípulo direto deste durante seu ministério, tendo defendido o mesmo que seu mestre por influência direta deste enquanto este estava vivo, como ele pode ser considerado pós-Agostinho? Só porque ele, por ser mais jovem, viveu alguns anos a mais? E além do mais, em segundo lugar, como eu acrescentei, Próspero mudou de posição em relação a seu mentor depois que este morreu. Portanto, ainda mais por esse fato, Próspero não se encaixaria mesmo.

Quanto às mudanças de posição do Próspero velho em relação ao pensamento de Agostinho, o irmão despreza a fonte que eu mencionei, quando ela traz simplesmente o que é considerado o último grande estudo já produzido no mundo por especialistas em Próspero de Aquitânia e seu pensamento. Mas, posso citar também os historiadores M. Cappuyns, Arturo Elberti, Alexander Hwangs e Justus Gonzales que corroboram o que digo. Os dois primeiros, inclusive, defendem que há três estágios claros do pensamento de Próspero em relação ao entendimento da mecânica da Salvação: a intransigente (até 432), a das primeiras concessões (433-435) e a das grandes concessões (após 435), esta última influenciada especialmente pelo papa Leão I, que não pensava como Próspero as questões da graça e do livre-arbítrio.

Mas, se o irmão preferir, podemos ler o próprio Próspero velho para “tirar a prova dos nove” sobre a mudança em seu pensamento. Vejamos apenas alguns trechos (se não este artigo vai ficar maior do que já é) de sua obra Chamado às Nações, reconhecida pela maioria esmagadora dos especialistas como sendo uma obra de sua autoria:

“A palavra do apóstolo, de que [Deus] deseja que todos os homens sejam salvos, deve ser entendida em seu inteiro e pleno significado” (PRÓSPERO, Chamado às Nações, Livro I, capítulo 12)

“Confesso que Deus quer que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade” (Ibid, Livro II, capítulo 1)

“O evangelho da cruz de Cristo foi estendido a todos os homens, sem exceção” (Ibid, Livro II, capítulo 1)

“A Bíblia ensina que Deus quer que todos os homens sejam salvos” (Ibid., Livro II, 2)

“Cristo morreu por todos os pecadores. [...] Ele morreu por todos os homens, sem exceção” (Ibid., Livro II, 16)

“Ele não recusou dar a toda a humanidade o que Ele deu a alguns homens, mas em alguns homens essa graça prevaleceu e em outros homens a natureza a resistiu” (Ibid., Livro II, capítulo 25)

“Quando, portanto, ouvimos Deus falar dessa forma com Caim, podemos ter qualquer dúvida de que Ele desejava a sua conversão e, tanto quanto era necessário, trabalhou para trazê-lo de volta a seus sentidos deste frenesi de impiedade? Mas, a maldade obstinada de Caim tornou-se mais indesculpável ainda através do que deveria ter sido o seu remédio. E, é claro, Deus previu a que extremos sua loucura iria levá-lo; e ainda, devido a este conhecimento infalível de Deus, não se pode concluir que a sua vontade criminosa foi instada por qualquer necessidade para o pecado. [...] Embora essas misericórdias divinas não tenham trazido qualquer remédio ou alteração sobre esses pecadores obstinados, elas mostram, no entanto, que a sua alienação não era o efeito de uma ordenança divina, mas de suas próprias vontades” (Ibid., Livro II, 13)

“Os fiéis que pela graça de Deus crêem em Cristo ainda permanecem livres para não crerem; aqueles que perseveram ainda podem se afastar de Deus” (Ibid., Livro II, 28)

Mas, deixemos Próspero e o quinto século, e voltemos outra vez ao aqui e agora.

(Este artigo continua na próxima postagem)

FONTE:
http://www.cpadnews.com.br/blog/silasdaniel/o-cristao-e-o-mundo/106/minhas-observacoes-as-objecoes-levantadas-pelo-irmao-franklin-ferreira-a-meu-artigo-na-revista-obreiro-(parte-v).html


2 comentários:

  1. http://www.teologiabrasileira.com.br/teologiadet.asp?codigo=467

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  2. Acima está a resposta do Franklin Ferreira às respostas do irmão Silas Daniel. Grande abraço.

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